segunda-feira, 26 de maio de 2014


A NAÇÃO: UMA INVENÇÃO RECENTE

"É muito recente a invenção histórica da nação, entendida como Estado-nação, definida pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal. Sua data de nascimento pode ser colocada por volta de 1830.
De fato, a palavra “nação” vem de um verbo latino, nascor (nascer), e de um substantivo derivado desse verbo, natio ou nação, que significa o parto de animais, o parto de uma ninhada. Por significar o “parto de uma ninhada”, a palavra natio/nação passou a significar, por extensão, os indivíduos nascidos ao mesmo tempo de uma mesma mãe, e, depois, os indivíduos nascidos num mesmo lugar. Quando, no final da Antiguidade e início da Idade Média, a Igreja Romana fixou seu vocabulário latino, passou a usar o plural nationes (nações) para se referir aos pagãos e distinguí-los do populus Dei, o “povo de Deus”. Assim, enquanto a palavra “povo” se referia a um grupo de indivíduos organizados institucionalmente, que obedecia a normas, regras e leis comuns, a palavra “nação” significava apenas um grupo de descendência comum e era usado não só para referir-se aos pagãos, em contraposição aos cristãos, mas também para referir-se aos estrangeiros (era assim que, em Portugal, os judeus eram chamados de “homens da nação”) e a grupos de indivíduos que não possuíam um estatuto civil e político (foi assim que os colonizadores se referiram aos índios falando em “nações indígenas”, isto é, àqueles que eram descritos por eles como “sem fé, sem rei e sem lei”). Povo, portanto, era um conceito jurídico-político, enquanto nação era um conceito biológico.
Antes da invenção histórica da nação, como algo político ou Estado-nação, os termos políticos empregados eram “povo” (a que já nos referimos) e “pátria”. Esta palavra também deriva de um vocábulo latino, pater, pai. Não se trata, porém, do pai como genitor de seus filhos - neste caso, usava-se genitor -, mas de uma figura jurídica, definida pelo antigo direito romano. Pater é o senhor, o chefe, que tem a propriedade privada absoluta e incondicional da terra e de tudo o que nela existe, isto é, plantações, gado, edifícios (“pai” é o dono do patrimonium), e o senhor, cuja vontade pessoal é lei, tendo o poder de vida e morte sobre todos os que formam seu domínio (casa, em latim, se diz domus, e o poder do pai sobre a casa é o dominium) , e os que estão sob seu domínio formam a familia (mulher, filhos, parentes, clientes e escravos). Pai se refere, portanto, ao poder patriarcal e pátria é o que pertence ao pai e está sob seu poder. É nesse sentido jurídico preciso que, no latim da Igreja, Deus é Pai, isto é, senhor do universo e dos exércitos celestes. É também essa a origem da expressão jurídica “pátrio poder”, para referir-se ao poder legal do pai sobre filhos, esposa e dependentes (escravos, servos, parentes pobres).
Se “patrimônio” é o que pertence ao pai, “patrício” é o que possui um pai nobre e livre, e “patriarcal” é a sociedade estruturada segundo o poder do pai. Esses termos designavam a divisão social das classes em que patrícios eram os senhores da terra e dos escravos, formando o Senado romano, e povo eram os homens livres plebeus, representados no Senado pelo tribuno da plebe. (Quando se olha um crucifixo, sempre se vê, na parte superior da cruz, uma faixa com as letras SPQR. Essas letras significam Senatus Populusque Romanus, o Senado e o Povo Romano. A faixa era obrigatória nas execuções de condenados para indicar que a execução fora aprovada por Roma.) Os patrícios eram os “pais da pátria”, enquanto os plebeus eram os “protegidos pela pátria”. Quando a Igreja Romana se estabeleceu como instituição, para marcar sua diferença do Império
Romano pagão e substituir os pais da pátria por Deus Pai, afirmou que, perante o Pai ou Senhor universal, todos são plebeus ou povo. É então que inventa a expressão “Povo de Deus”, que, como vimos, desloca a divisão social entre patrícios e plebeus para a divisão religiosa entre nações pagãs e povo cristão.
A partir do século XVIII, com a revolução norte-americana, holandesa e francesa, “pátria” passa a significar o território cujo senhor é o povo organizado sob a forma de Estado independente. Eis por que, nas revoltas de independência, ocorridos no Brasil nos finais do século XVIII e início do século XIX, os revoltosos falavam em “pátria mineira”, “pátria pernambucana”, “pátria americana”; finalmente, com o Patriarca da Independência, José Bonifácio, passou-se a falar em “pátria brasileira”. Durante todo esse tempo, “nação” continuava usada apenas para os Índios, os negros e os judeus.
Se acompanharmos a periodização proposta por Eric Hobsbawm, em seu estudo sobre a invenção histórica do Estado-nação3, podemos datar o aparecimento de “nação” no vocabulário político na altura de 1830, e seguir suas mudanças em três etapas: de 1830 a 1880, fala-se em “princípio da nacionalidade”; de 1880 a 1918, fala-se em “idéia nacional”; e de 1918 aos anos 1950-60, fala-se em “questão nacional”. Nessa periodização, a primeira etapa vincula nação e território, a segunda a articula à língua, à religião e à raça, e a terceira enfatiza a consciência nacional, definida por um conjunto de lealdades políticas. Na primeira etapa, o discurso da nacionalidade provém da economia política liberal; na segunda, dos intelectuais pequeno-burgueses, particularmente alemães e italianos, e, na terceira, emanam principalmente dos partidos políticos e do Estado.
O ponto de partida dessas elaborações foi, sem dúvida, o surgimento do Estado moderno da “era das revoluções”, definido por um território preferencialmente contínuo, com limites e fronteiras claramente demarcados, agindo política e administrativamente sem sistemas intermediários de dominação, e que precisava do consentimento prático de seus cidadãos válidos para políticas fiscais e ações militares. (Falamos em cidadãos “válidos” porque a cidadania, embora declarada universal, não o era de fato, uma vez que o cidadão era definido pela independência econômica - isto é, pela propriedade privada dos meios de produção -, excluindo trabalhadores e mulheres, e o sufrágio não era universal e sim censitário isto é, segundo o critério da riqueza e da instrução. O sufrágio universal consagrou-se nas democracias efetivamente apenas depois da Segunda Guerra Mundial, como resultado de lutas sociais e populares. Em outras palavras, liberalismo não é sinônimo de democracia.) Esse Estado precisava enfrentar dois problemas principais: de um lado, incluir todos os habitantes do território na esfera da administração estatal; de outro, obter a lealdade dos habitantes ao sistema dirigente, uma vez que a luta de classes, a luta no interior de cada classe social, as tendências políticas antagônicas e as crenças religiosas disputavam essa lealdade. Em suma, como dar à divisão econômica, social e política a forma da unidade indivisa? Pouco a pouco, a idéia de nação surgirá como solução dos problemas.
Como observa Hobsbawm, o liberalismo tem dificuldade para operar com a idéia de nação e de Estado nacional porque, para a ideologia liberal, a realidade se reduz a duas referências econômicas: uma unidade mínima, o indivíduo, e uma unidade máxima, a empresa, de sorte que não parece haver necessidade de construir uma unidade superior a estas. No entanto, os economistas liberais não podiam operar sem o conceito de” economia nacional”, pois era fato inegável que havia o Estado com o monopólio da moeda, com finanças públicas e atividades fiscais, além da função de garantir a segurança da propriedade privada e dos contratos econômicos, e do controle do aparato militar de repressão às classes populares. Os economistas liberais afirmavam por isso que a “riqueza das nações” dependia de estarem elas sob governos regulares e que a
fragmentação nacional, ou os Estados nacionais, era favorável à competitividade econômica e ao progresso.
Por outro lado, em países (como a Alemanha, os Estados Unidos ou o Brasil) que buscavam proteger suas economias do poderio das mais fortes, era grande a atração da idéia de um Estado nacional protecionista. Veio dos economistas alemães a idéia do “princípio de nacionalidade”, isto é, um princípio que definia quando poderia ou não haver uma nação ou um Estado-nação. Esse princípio era o território extenso e a população numerosa, pois um Estado pequeno e pouco populoso não poderia “promover à perfeição os vários ramos da produção”. Desse princípio derivou-se uma segunda idéia, qual seja, a nação como um processo de expansão, isto é, de conquista de novos territórios, falando-se, então, em “unificação nacional”. Dimensão do território, densidade populacional e expansão de fronteiras tornaram-se os princípios definidores da nação como Estado. Todavia, o território em expansão só se unificaria se houvesse o Estado-nação, e este deveria produzir um elemento de identificação que justificasse a conquista expansionista. Esse elemento passou a ser a língua, e por isso o Estado-nação precisou contar com uma elite cultural que lhe fornecesse não só a unidade lingüística, mas lhe desse os elementos para afirmar que o desenvolvimento da nação era o ponto final de um processo de evolução, que começava na família e terminava no Estado. A esse processo deu-se o nome de progresso.
A partir de 1880, porém, na Europa, a nação passa pelo debate sobre a “idéia nacional”, pois as lutas sociais e políticas haviam colocado as massas trabalhadoras na cena, e os poderes constituídos tiveram de disputar com os socialistas e comunistas a lealdade popular. Ou, como escreve Hobsbawm, “a necessidade de o Estado e as classes dominantes competirem com seus rivais pela lealdade das ordens inferiores se tornou, portanto, aguda”. O Estado precisava de algo mais do que a passividade de seus cidadãos: precisava mobilizá-los e influenciá-los a seu favor. Precisava de uma “religião cívica”, o patriotismo. Dessa maneira, a definição da nação pelo território, pela conquista e pela demografia já não bastava, mesmo porque, além das lutas sociais internas, regiões que não haviam preenchido os critérios do “princípio de nacionalidade” lutavam para ser reconhecidas como Estado-nações independentes. Durante o período de 1880-1918, a “religião cívica” transforma o patriotismo em nacionalismo, isto é, o patriotismo se torna estatal, reforçado com sentimentos e símbolos de uma comunidade imaginária cuja tradição começava a ser inventada.
Essa construção decorreu da necessidade de resolver três problemas prementes: as lutas populares socialistas, a resistência de grupos tradicionais ameaçados pela modernidade capitalista e o surgimento de um estrato social ou de uma classe intermediária, a pequena burguesia, que aspirava ao aburguesamento e temia a proletarização. Em outras palavras, foi exatamente no momento em que a divisão social e econômica das classes apareceu com toda clareza e ameaçou o capitalismo que este procurou na “idéia nacional” um instrumento unificador da sociedade. Não por acaso, foram os intelectuais pequeno-burgueses, apavorados com o risco de proletarização, que transformaram o patriotismo em nacionalismo quando deram ao “espírito do povo”, encarnado na língua, nas tradições populares ou folclore e na raça (conceito central das ciências sociais do século XIX), os critérios da definição da nacionalidade.
A partir dessa época, a nação passou a ser vista como algo que sempre teria existido, desde tempos imemoriais, porque suas raízes deitam-se no próprio povo que a constitui. Dessa maneira, aparece um poderoso elemento de identificação social e política, facilmente reconhecível por todos (pois a nação está nos usos costumes, tradições, crenças da vida cotidiana) e com a capacidade para incorporar numa única crença as crenças rivais, isto é, o apelo de classe, o apelo político e o apelo religioso não precisavam disputar a lealdade dos cidadãos porque toda essas crenças podiam exprimir-se umas pelas outras sob o fundo comum da nacionalidade. Sem essa referência, tornar-se-ia incompreensível que, em 1914, milhões de proletários tivessem marchado para a guerra para matar e morrer ser vindo aos interesses do capital.
Foi a percepção do poder persuasivo da “idéia nacional” que levou à “questão nacional”, entre 1918 e os anos 1950-60 do século XX4. A Revolução Russa (1917), a derrota alemã na Primeira Guerra (1914-18), a depressão econômica dos anos 20-30, o aguçamento mundial da luta de classes sob bandeiras socialistas e comunistas preparavam a arrancada mais forte do nacionalismo,
cuja expressão paradigmática foi o nazi-fascismo. No caso do Brasil, não custa lembrar o que, nessa época, diziam os fascistas, isto é, os membros da Ação Integralista Brasileira, partido político criado entre 1927 e 1928 e dirigido pelo
escritor modernista Plínio Salgado:
“Esta longa escravidão ao capitalismo internacional; este longo trabalho de cem anos na gleba para opulentar os cofres de Wall Street e da City; essa situação deprimente em face do estrangeiro; este cosmopolitismo que nos amesquinha; essas lutas internas que nos ensangüentam; esta aviltante propaganda comunista que desrespeita todos os dias a bandeira sagrada da Pátria; esse tripudiar de regionalismo em esgares separatistas a enfraquecer a Grande Nação; esse comodismo burguês; essa miséria de nossas populações sertanejas; a opressão em que se debate nosso proletariado, duas vezes explorado pelo patrão e pelo agitador comunista e anarquista; a vergonha de sermos um país de oito milhões de quilômetros quadrados e quase cinqüenta milhões de habitantes, sem prestígio, sem crédito, corroídos de politicagem de partidos”.
Além de se apropriar da elaboração nacionalista, feita nas etapas anteriores (expansão e “unificação” do território, “espírito do povo” e raça), o nazi-fascismo e os vários nacionalismos desse período contaram com a nova comunicação de massa (o rádio e o cinema) para “transformar símbolos nacionais em parte da vida cotidiana de qualquer indivíduo e, com isso, romper as divisões entre a esfera privada e local e a esfera pública e nacional”. A primeira expressão dessa mudança aparece nos esportes, transformados em espetáculos de massa, nos quais já não competem equipes e sim se enfrentam e se combatem nações (como se viu nos Jogos Olímpicos de 1936, no aparecimento do Tour de France e da Copa do Mundo). Passou-se a ensinar às crianças que a lealdade ao time é lealdade à nação. Passeatas embandeiradas, ginástica coletiva em grandes estádios, programas estatais pelo rádio, uniformes políticos com cores distintivas, grandes comícios marcam esse período como época do “nacionalismo militante”.
A pergunta suscitada por essa terceira fase da construção da nação é: por que foi bem-sucedida e por que, passadas as causas imediatas que a produziram, ela permaneceu nas sociedades contemporâneas? Por que a luta de classes teve uma capacidade mobilizadora menor do que o nacionalismo? Por que até mesmo as revoluções socialistas acabaram assumindo a forma do nacionalismo? Por que a “questão nacional” parecia ter sentido? O nacionalismo militante, diz Hobsbawm, não pode ser visto simplesmente como reflexo do desespero e da impotência política diante da incapacidade mobilizadora do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Sem dúvida, esses aspectos são importantes, indicando a adesão daqueles que haviam perdido a fé em utopias (à
esquerda) ou dos que haviam perdido velhas certezas políticas e sociais (à direita). Todavia, se para esses o nacionalismo militante era um imperativo político exclusivo, o mesmo não pode ser dito da adesão generalizada, nem, sobretudo da permanência do nacionalismo em toda parte, depois de encerrado o nazi-fascismo.
A possível explicação encontra-se na natureza do Estado moderno como espaço dos sentimentos políticos e das práticas políticas em que a consciência política do cidadão se forma referida à nação e ao civismo, de tal maneira que a distinção entre classe social e nação não é clara e freqüentemente está esfumada ou diluída. Para nós, no Brasil, nada exprime melhor essa situação do que o nacionalismo das esquerdas nos anos 1950-60, período que conhecemos com os nomes de nacional-desenvolvimentismo, primeiro, e de nacional-popular, depois. De fato, para as esquerdas, a referência sempre havia sido a divisão social das classes e não a unidade social imaginária imposta pela idéia de nação. No entanto, no período 1950-60, a luta histórica foi interpretada pelas esquerdas como combate entre a nação (representada pela “burguesia nacional progressista” e as “massas conscientes”) e a antinação (representada pelos setores “atrasados” da classe dominante, pelas “massas alienadas” e pelo capital estrangeiro ou as “forças do imperialismo'').
O processo histórico de invenção da nação nos auxilia a compreender um fenômeno significativo, no Brasil, qual seja, a passagem da idéia de “caráter nacional” para a de “identidade nacional”. O primeiro corresponde, grosso modo, aos períodos de vigência do “princípio da nacionalidade” (1830-1880) e da “idéia nacional” (1880-1918), enquanto a segunda aparece no período da “questão nacional” (1918-1960).
Território, densidade demográfica, expansão de fronteiras, língua, raça, crenças religiosas, usos e costumes, folclore e belas-artes foram os elementos principais do “caráter nacional”, entendido como disposição natural de um povo e sua expressão cultural. Como observa Perry Anderson, “o conceito de caráter é em princípio compreensivo, cobrindo todos os traços de um indivíduo ou grupo; ele é auto-suficiente, não necessitando de referência externa para sua definição; e é mutável, permitindo modificações parciais ou gerais”.
Em seu trabalho pioneiro e hoje clássico, O caráter nacional brasileiro, Dante Moreira Leite mostra como as formulações brasileiras sobre o “caráter nacional' dependeram de três determinações principais: o momento sociopolítico, a inserção de classe ou a classe social dos autores, e as idéias européias mais em voga em cada ocasião. Tomando as construções do “caráter
nacional” como ideologias, Moreira Leite conclui seu livro afirmando que elas foram, na verdade, obstáculos para o conhecimento da sociedade brasileira e não a apresentação fragmentada e parcial de aspectos reais dessa sociedade. Quando se acompanha a elaboração ideológica do “caráter nacional” brasileiro, observa-se que este é sempre algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (como no caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo, por exemplo) ou negativa (como no caso de Silvio Romero, Manoel Bonfim ou Paulo Prado, por exemplo). Em outras palavras, quer para louvá-lo, quer par; depreciá-lo, o “caráter nacional” é uma totalidade de traços coerente, fechada e sem lacunas porque constitui uma “natureza humana” determinada. 
A ideologia da “identidade nacional” opera noutro registro. Antes de mais nada, ela define um núcleo essencial tomando como critério algumas determinações internas da nação que são percebidas por sua referência ao que lhe é externo, ou seja, a identidade não pode ser construída sem a diferença. O núcleo essencial é, no plano individual, a personalidade de alguém, e, no plano social, o lugar ocupado na divisão do trabalho, a inserção social de classe. Isso traz como conseqüência que a “identidade nacional” precisa ser concebida como harmonia e/ou tensão entre o plano individual e o social e também como harmonia e/ou tensão no interior do próprio social. Para fazê-la, os ideólogos da “identidade nacional” invocam as idéias de “consciência individual”, “consciência social” e “consciência nacional”. Ou, como observa Anderson, a identidade “deve incluir uma certa autoconsciência [...] sempre possui uma dimensão reflexiva ou subjetiva, enquanto o caráter pode permanecer, no limite, puramente objetivo, algo percebido pelos outros sem que o agente esteja consciente dele”. O apelo da “identidade nacional” à consciência opera um deslizamento de grande envergadura, escorregando da consciência de classe para a consciência nacional.
Para que se possa ter uma idéia da diferença entre as duas ideologias, tomemos um exemplo. Na ideologia do “caráter nacional brasileiro”, a nação é formada pela mistura de três raças - índios, negros e brancos - e a sociedade mestiça desconhece o preconceito racial. Nessa perspectiva, o negro é visto pelo olhar do paternalismo branco, que vê a afeição natural e o carinho com que brancos e negros se relacionam, completando-se uns aos outros, num trânsito contínuo entre a casa-grande e a senzala. Na ideologia da “identidade nacional”, o negro é visto como classe social, a dos escravos, e sob a perspectiva da escravidão como instituição violenta que coisifica o negro, cuja consciência fica alienada e só escapa fugazmente da alienação nos momentos de grande revolta. Na primeira, o caráter brasileiro é formado pelas relações entre o branco bom e o negro bom (se nosso caráter for louvado), ou entre o branco ignorante e o negro indolente (se nosso caráter for depreciado). Na segunda, a identidade nacional aparece como violência branca e alienação negra, isto é, como duas formas de consciência definidas por uma instituição, a escravidão. Como observa Silvia Lara, no livro Campos da violência, a primeira imagem é a da escravidão benevolente, enquanto a segunda é a da escravidão como violência, mas nos dois casos os negros não são percebidos como o que realmente foram, tirando desses homens e mulheres “sua capacidade de criar, de agenciar e ter consciências políticas diferenciadas”, numa palavra, despojando-os da condição de sujeitos sociais e políticos.
Enquanto a ideologia do “caráter nacional” apresenta a nação totalizada – é assim que, por exemplo, a mestiçagem permite construir a imagem de uma totalidade social homogênea -, a da “identidade nacional” a concebe como totalidade incompleta e lacunar - é assim que, por exemplo, escravos e homens livres pobres, no período colonial, ou os operários, no período republicano, são
descritos sob a categoria da consciência alienada, que os teria impedido de agir de maneira adequada. A primeira opera com o pleno ou o completo, enquanto a segunda opera com a falta, a privação, o desvio. E não poderia ser de outra maneira. A “identidade nacional” pressupõe a relação com o diferente. No caso brasileiro, o diferente ou o outro, com relação ao qual a identidade é definida, são os países capitalistas desenvolvidos, tomados como se fossem uma unidade e uma totalidade completamente realizadas. É pela imagem do desenvolvimento completo do outro que a nossa “identidade”, definida como subdesenvolvida, surge lacunar e feita de faltas e privações. 
Entre os anos 1950-1970, a elaboração da “identidade nacional” apresenta a sociedade brasileira com os seguintes traços:
1) ausência de uma burguesia nacional plenamente constituída, tal que alguma fração da classe dominante possa oferecer-se como portadora de um projeto hegemônico, não tendo, portanto, condições de se apresentar como classe dirigente; há um vazio no alto;
2) ausência de uma classe operária madura, autônoma e organizada, preparada para propor um programa político capaz de destruir o da classe dominante fragmentada. Por suas origens imigrantes e camponesas, essa classe tende a desviar-se de sua tarefa histórica, caindo no populismo; há um desvio embaixo;
3) presença de uma classe média de difícil definição sociológica, mas caracterizada por uma ideologia e uma prática heterônomas, oscilando entre atrelar-se à classe dominante ou ir a reboque da classe operária;
4) as duas primeiras ausências e a inoperância da classe média criam um vazio político que será preenchido pelo Estado, o qual é, afinal, o único sujeito político e o único agente histórico;
5) a precária situação das classes torna impossível a qualquer delas produzir uma ideologia, entendida como um sistema coerente de representações e normas com universalidade suficiente para impor-se a toda a sociedade. Por esse motivo, as idéias são importadas e estão sempre fora do lugar.
Assim, a identidade do Brasil, construída na perspectiva do atraso ou do subdesenvolvimento, é dada pelo que lhe falta, pela privação daquelas características que o fariam pleno e completo, isto é, desenvolvido.
Postas as coisas dessa maneira, tanto a ideologia do caráter nacional como a da identidade nacional parecem pertencer a um passado remoto, nada podendo dizer sobre a situação atual do país que, como sabemos, é agora batizado com o nome e país emergente.
De fato, hoje, o “princípio da nacionalidade” (como diziam os liberais do século XIX) ou a “idéia nacional” e a “questão nacional” (como diziam liberais, marxistas e nazi-fascistas do início até os meados do século XX) parecem, finalmente, ter perdido sentido. Enquanto de 1830 a 1970, a nação e o nacionalismo foram objeto de discursos partidários, de programas estatais, lutas civis e guerras mundiais, hoje, o discurso e a ação dos direitos civis, do multiculturalismo, do direito à diferença e a prática econômica neoliberal não apenas tiraram da cena política e ideológica as nacionalidades, mas também mostram que estas permaneceram como referenciais importantes apenas em países e regiões que não têm muito peso em termos dos poderes econômicos e políticos mundiais (Afeganistão, Irlanda, País Basco, Sri Lanka, Timor, Sarajevo, Kosovo, Líbia) ou naqueles em que a questão da nacionalidade aparece travejada pela religião (Irã Israel, Palestina).
Isso nos leva a indagar se haveria algum cabimento na celebração do “Brasil 500”, a menos que um necrológio possa ser considerado uma celebração.
Todavia, postas as coisas dessa maneira, poderíamos também indagar se não estaríamos substituindo um fatalismo fundamentalista por outro. Ou seja, assim como os nacionalismos, ocultando que a nação é uma construção histórica recente fizeram da nacionalidade algo imemorial e destino necessário da civilização, também poderíamos estar tomando o fim dos nacionalismos ou dos Estados-nação como um destino inelutável, como o “fim da história”, tão ao gosto dos neoliberais.
Por isso, cremos ser mais avisado distinguir entre o lugar da nação nas elaborações político- ideológicas de 1830-1980 e seu lugar nas representações sociopolíticas brasileiras, desde o final dos anos 80.
De fato, no primeiro período, a nação e a nacionalidade são um programa de ação e ocupam, à direita e à esquerda, o espaço das lutas econômicas, política e ideológicas. No segundo período, porém, isto é, desde 1980 mais ou menos, nação e nacionalidade se deslocam para o campo das representações já consolida das - que, portanto, não são objeto de disputas e programas -, tendo a
seu cargo diversas tarefas político-ideológicas, tais como legitimar nossa sociedade autoritária, oferecer mecanismos para tolerar várias formas de violência e servir de parâmetro para aferir ou avaliar as autodenominadas políticas de modernização do país. É com esse conjunto de tarefas que elas vêm se inscrever nas comemorações do “Brasil 500”.
“Brasil 500” é, pois, um semióforo historicamente produzido. Como todo semióforo que se destina a explicar a origem e dar um sentido ao momento funde dor de uma coletividade é uma entidade mítica, “Brasil 500” também pertence a campo mítico, tendo como tarefa a reatualização de nosso mito fundador.
Antes de nos voltarmos para o momento de instituição desse mito, queremos, de maneira breve e impressionista, sem acompanhar propriamente as condições materiais da história do Brasil e de sua periodização, assinalar momentos variados em que, silenciosa e invisível, a mitologia da origem se espraia em ações e falas da sociedade e do Estado brasileiros. Como se verá, os exemplos
aqui escolhidos correspondem, grosso modo, às três etapas de construção da idéia de nação que, muito rapidamente, apresentamos acima."

Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária, Marilena Chaui.

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