quinta-feira, 15 de maio de 2014

Liberdade De Pensamento

"Em torno do ano de 1707, época em que os ingleses ganharam a batalha de Saragoça, protegeram Portugal e durante algum tempo eram um rei à Espanha, milorde Boldmind, oficial general, que tinha sido ferido, estava nas águas de Barèges. Ali encontrou o conde Medroso, que caíra do cavalo, atrás das bagagens, a uma légua e meia do campo de batalha e também tinha vindo tratar-se nas águas. Era ligado à inquisição; milorde Boldmind era familiar apenas na conversação. Certo dia, depous de beber, teve com Medroso a seguinte conversa:

Boldmind - Então és sargento dos dominicanos? Exerces realmente um ofício vil.
Medroso - É verdade; mas preferi ser criado que vítima deles e preferi a desgraça de queimar meu próximo àquela de ser eu mesmo assado.
Boldmind - Que horrível alternativa! eras cem vezes mais feliz sob o jugo dos mouros que te deixavam te corromper livremente em todas as suas superstições e que, por mais vencedores que fossem, não se arrogavam o direito inaudito de pôr as almas no ferro.
Medroso - Que queres? Nada é permitido; nem escrever, nem falar, nem mesmo pensar. Se falamos, é fácil interpretar nossas palavras e mais ainda nossos escritos. Enfim, como não podem nos condenar num auto-de-fé por nossos pensamentos secretos, nos ameaçam de sermos eternamente queimados por ordem do próprio Deus, se não pensarmos como os jacobinos. Persuadiram o governo de que, se tivéssemos o senso comum, todo o Estado ficaria em combustão e a nação se tornaria a mais infeliz da terra.
Boldmind - Achas que somos tão infelizes nós, os ingleses, que cobrimos os mares de navios e que viemos ganhar para vocês batalhas nos confins da Europa? Acreditas que os holandeses, que lhes arrebataram quase todas as suas descobertas na Índia e que hoje se incluem na categoria de seus protetores, sejam amaldiçoados por Deus por terem concedido inteira liberdade à imprensa e por fazerem o comércio dos pensamentos dos homens? O império romano ficou menos poderoso, porque Cícero escreveu com liberdade?
Medroso - Quem é Cícero? Nunca ouvi falar desse homem, aqui não se trata de Cícero, trata-se de nosso santo padre o papa e de Santo Antônio de Pádua, e sempre ouvi dizer que a religião romana está perdida se os homens começarem a pensar.
Boldmind - Não cabe a ti acreditar nisso, pois, estás certo que tua religião é divina e que as portas do inferno não podem prevalecer contra ela. Se assim é, nada poderá destruí-la.
Medroso - Não, mas pode ser reduzida a pouca coisa; e é por ter pensado que a Suécia, a Dinamarca, toda a tua ilha e metade da Alemanha gemem na espantosa desgraça de não serem súditos do papa. Dizem até mesmo que, se os homens continuarem a seguir suas falsas luzes, logo se contentarão com a simples adoração de Deus e com a virtude. Se as portas do inferno prevalecerem até esse ponto, o que se tornará o Santo Ofício?
Boldmin - Se os primeiros cristãos não tivessem tido a liberdade de pensar, não é verdade que não existiria cristianismo?
Medroso - Que queres dizer? Não te entendo.
Boldmind - Acredito realmente. Quero dizer que, se Tibério e os primeiros imperadores tivessem tido jacobinos que tivessem impedido os primeiros cristãos de usar canetas e tinta; se durante tanto tempo não tivesse sido permitido pensar livremente no império romano, teria sido impossível para os cristãos estabelecer seus dogmas, Se, portanto, o cristianismo só se formou pela liberdade de pensamento, por que contradição, por que injustiça haveria ele de querer aniquilar hoje essa liberdade sobre a qual ele foi fundado?
    Quando alguém te propõe algum negócio de teu interesse, não o examinas longamente, antes de concluí-lo? Que maior interesse há no mundo que o de nossa felicidade ou de nossa eterna desgraça? Há cem religiões na terra e todas te condenam se acreditares em teus dogmas, que elas chamam de absurdos e ímpios; examina, portanto, esses dogmas.
Medroso - Como posso examiná-los? Não sou jacobino.
Boldmind - És homem, e isso basta.
Medroso - Ai de mim! Tu és muito mais homem que eu.
Boldmind - Cabe somente a ti aprender a pensar; nasceste com espírito; és um pássaro na gaiola da inquisição; o Santo Ofício te cortou as asas, mas elas podem voltar a crescer. Aquele que não sabe geometria, pode aprendê-la; todo homem pode instruir-se; é vergonhoso pôr a própria alma nas mãos daqueles em quem não confiarias teu dinheiro; Ousa pensar por ti mesmo.
Medroso - Dizem que, se todos pensassem por si, grande e estranha seria a confusão.
Boldmind - Pelo contrário. Quando assistimos a um espetáculo, cada um expressa livremente sua opinião e a paz não é perturbada; mas se algum protetor insolente de um mau poeta quiser forçar todas as pessoas de bom gosto a considerar bom o que lhes parece mau, entãos vaias poderiam ser ouvidas e os dois partidos poderiam acabar atirando-se maças na cabeça, como aconteceu uma vez em Londres. Foram esses tiranos dos espíritos que causaram uma parte das desgraças do mundo. Na Inglaterra, só somos felizes desde que cada um usufrua livremente do direito de expressar sua opinião.
Medroso - Nós também estamos muito tranquilos em Lisboa, onde ninguém pode expressar sua opinião.
Boldmind - Estão tranquilos, mas não felizes; é a tranquilidade dos escravos das galés que remam em cadência e em silêncio.
Medroso - Acreditas, pois, que minha alma está nas galés?
Boldmindo - Sim; e gostaria de libertá-la.
Medroso - Mas se eu me sentir bem nas galés?
Boldmind - Nesse caso, mereces estar nelas."

Voltaire, Dicionário Filosófico, em 1764.


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