sexta-feira, 23 de maio de 2014

"PRIMEIRO COVEIRO:
[...]
Na mocidade eu amava e amava;
Como era doce passar assim o dia
Encurtando (ô!) o tempo (ah!) que voava
E eu não via a vida que fugia.
HAMLET: Esse camarada não tem consciência do trabalho que faz, cantando enquanto abre uma sepultura?
HORÁCIO: O costume transforma isso em coisa natural.
HAMLET: É mesmo. A mão que não trabalha tem o tato mais sensível.
PRIMEIRO COVEIRO: (Canta.) E a velhice chega bem furtiva
Na lentidão que tarda, mas não erra
E nos atira aqui dentro da cova
Como se o homem também não fosse terra.
(Descobre um crânio.)
HAMLET: Esse crânio já teve língua um dia, e podia cantar. E o crápula o atira aí pelo chão, como se fosse a queixada de Caim, o que cometeu o primeiro assas
sinato. Pode ser a cachola de um politiqueiro, isso que esse cretino chuta agora;
ou até o crânio de alguém que acreditou ser mais que Deus.
HORÁCIO: É, pode ser.
HAMLET: Ou de um cortesão que só sabia dizer: “Bom-dia, amado príncipe!
Como está o senhor, meu bom senhor?” Pode ter sido o Lord Tal-e-qual, que elo
giava o cavalo do Lord Qual-e-Tal na esperança de ganhá-lo, não é mesmo?
HORÁCIO: É, meu senhor.
HAMLET: Pode ser. E agora sua dona é Madame Verme; desqueixado e com o
quengo martelado pela pá de um coveiro. Uma bela revolução, se tivéssemos ca
pacidade de entendê-la. A educação desses ossos terá custado tão pouco que só
sirvam agora pra jogar a bocha? Os meus doem, só de pensar nisso.
PRIMEIRO COVEIRO: (Canta.) Uma picareta e uma pá, uma pá
E também uma mortalha
Cova de argila cavada
Pra enterrar a gentalha.
(Desenterra outro crânio.)
HAMLET: Mais um! Talvez o crânio de um advogado! Onde foram parar os seus sofismas, suas cavilações, seus mandatos e chicanas? Por que permite agora que um patife estúpido lhe arrebente a caveira com essa pá imunda e não o denuncia por lesões corporais? Hum! No seu tempo esse sujeito talvez tenha sido um grande comprador de terras, com suas escrituras, fianças, termos, hipotecas, retomadas de posse. Será isso a retomada final de nossas posses? O termo de nossos termos, será termos a caveira nesses termos? Os fiadores dele continuarão avalizando só com a garantia desse par de identificações? As simples escrituras de suas terras dificilmente caberiam nessa cova; o herdeiro delas não mereceria um pouco mais?
HORÁCIO: Nem um dedo mais, senhor.
HAMLET: O pergaminho das escrituras não é feito de pele de carneiro?
HORÁCIO: É, meu senhor. De vitela também.
HAMLET: É; só vitelos e carneiros têm confiança nisso. Vou falar com esse aí.
(Ao Coveiro.) De quem é essa cova, rapaz?
PRIMEIRO COVEIRO: Minha, senhor.
(Canta.) O que falta a tal hóspede
É um buraco de argila.
HAMLET: Tua, claro. Estás todo encovado.
PRIMEIRO COVEIRO: Sua é que não é. O senhor parece preocupado, e ela é
pós-ocupada.
Eu me ocupo da campa, logo estou acampado.
HAMLET: A cova que cavas é coisa de morto. Um vivo na tumba está só confinado.
PRIMEIRO COVEIRO: Resposta bem viva, senhor; xeque-mortal!
HAMLET: Pra que homem está cavando o túmulo?
PRIMEIRO COVEIRO: Pra homem nenhum, senhor.
HAMLET: Pra qual mulher, então?
PRIMEIRO COVEIRO: Nenhuma, também.
HAMLET: Então o que é que você vai enterrar aí?
PRIMEIRO COVEIRO: Alguém que foi mulher, senhor; mas, paz à sua alma, já
morreu.
HAMLET: O patife é esperto! Devemos falar com precisão, ou ele nos envolve em ambigüidades. Por Deus, Horácio, há uns três anos venho notando isso; nosso tempo se tornou tão refinado que a ponta do pé do camponês já está no calcanhar do cortesão; até lhe machucando os calos. (Ao Coveiro.) Há quanto tempo você é coveiro?
PRIMEIRO COVEIRO: Entre todos os dias do ano escolhi começar no dia em que falecido rei Hamlet venceu Fortinbrás.
HAMLET: Há quanto tempo, isso?
PRIMEIRO COVEIRO: O senhor não sabe? Qualquer idiota sabe. Foi no mesmo
dia em que nasceu o príncipe Hamlet, o que ficou maluco e foi mandado pra In-
glaterra.
HAMLET: Ó, diabo, por que foi mandado pra Inglaterra?
PRIMEIRO COVEIRO: Ué, porque ficou maluco. Diz que lá recupera o juízo; e, se não recuperar, lá não tem importância.
HAMLET: Por quê?
PRIMEIRO COVEIRO: Na Inglaterra ninguém repara nele, aquilo lá é tudo doido.
HAMLET: Como é que ficou maluco?
PRIMEIRO COVEIRO: Dizem que de maneira muito estranha.
HAMLET: Estranha como?
PRIMEIRO COVEIRO: Parece que perdeu o juízo.
HAMLET: E qual foi a razão?
PRIMEIRO COVEIRO: Achar que não tinha razão! Isso, na Dinamarca! Já sou
coveiro aqui, juntando rapaz e homem feito, tem bem trinta anos.
HAMLET: Quanto tempo um homem pode ficar embaixo da terra antes de apo-
drecer?
PRIMEIRO COVEIRO: Olha, se já não estava podre antes de morrer – hoje tem aí muito cadáver pestilento que já quase nem espera a gente enterrar – dura uns
oito ou nove anos. Um curtidor agüenta bem nove anos.
HAMLET: Por que ele mais que os outros?
PRIMEIRO COVEIRO: Ora, senhor, a pele dele está tão curtida pela profissão
que a água custa muito a penetrar. Essa água é que é a inimiga corroedora do
filho da puta do cadáver. Olha, vê aqui esse crânio? – tava enterrado aí há vinte e três anos.
HAMLET: De quem era?
PRIMEIRO COVEIRO: Um maluco filho da puta, esse aí. O senhor pensa que é
de quem?
HAMLET: Sei lá – não sei.
PRIMEIRO COVEIRO: Que a peste nunca abandone esse palhaço louco! Uma
vez derramou na minha cabeça um garrafão inteiro de vinho do Reno. Esse crâ-
nio aí, cavalheiro, foi o crânio de Yorick, o bobo do rei.
HAMLET: Este aqui?
PRIMEIRO COVEIRO: Esse aí!
HAMLET: Deixa eu ver. (Pega o crânio.) Olá, pobre Yorick! Eu o conheci, Horá-
cio. Um rapaz de infinita graça, de espantosa fantasia. Mil vezes me carregou nas costas; e agora, me causa horror só de lembrar! Me revolta o estômago! Daqui pendiam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Yorick, onde andam agora as tuas piadas? Tuas cambalhotas? Tuas cantigas? Teus lampejos de alegria que faziam a mesa explodir em gargalhadas? Nem uma gracinha mais, zombando da tua própria dentadura? Que falta de espírito! Olha, vai até o quarto da minha grande Dama e diz a ela que, mesmo que se pinte com dois dedos de espessura, este é o resultado final; vê se ela ri disso! Por favor, Horácio, me diz uma coisa.
HORÁCIO: O que, meu senhor?
HAMLET: Você acha que Alexandre também ficou assim em baixo da terra?
HORÁCIO: Assim mesmo.
HAMLET: E fedia assim? Puá! (Joga o crânio fora.)
HORÁCIO: Assim mesmo.
HAMLET: A que serventias vis podemos retornar, Horácio! Nada nos impede de
seguir o caminho da nobre cinza de Alexandre, até achá-lo calafetando um furo
de barrica.
HORÁCIO: Pensar assim é chegar a minúcias excessivas.
HAMLET: Não, por minha fé, nada disso! É apenas seguir o pensamento com na
turalidade. Vê só: Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado; Alexandre voltou ao pó; o pó é terra; da terra nós fazemos massa. Por que essa massa em que ele se converteu não pode calafetar uma barrica?
Cesar Augusto é morto, virou terra;
Pôr o vento pra fora é sua guerra –
O mundo tremeu tanto ante esse pó
Que serve agora pra tapar buraco – só."

Hamlet, William Shakeaspeare.

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