terça-feira, 26 de agosto de 2014

"    Vultos negros agachavam-se, deitavam-se, sentavam-se entre as árvores, encostados nos troncos, grudados no chão, meio visíveis, meio ocultos na penumbra, com todas as atitudes de dor, abandono e desespero. Outra mina explodiu no penhasco, seguida de um leve tremor de terra sob os pés. O trabalho estava em andamento. O trabalho! E esse era o lugar para onde alguns dos ajudantes haviam se retirado para morrer.
    Estavam morrendo devagar - era evidente. Não eram inimigos, não eram criminosos, e agora era como se fossem seres de outro mundo - não passavam de escuras sombras, doentes e famintas, amontoadas confusamente na penumbra esverdeada. Trazidos de todos os recantos da costa, com toda a legalidade dos contratos temporários, perdidos num ambiente inóspito, alimentados com comida estranha, adoeciam, tornavam-se ineficientes, sendo-lhes então permitido rastejar para longe e descansar. Essas formas moribundas eram livres como o ar - e quase diáfanas de tão magras. Comecei por distinguir o brilho de olhos sob as árvores. Depois, olhando para baixo, enxerguei um rosto próximo a minha mão. Um negro feixe de ossos ergueram-se, e os olhos afundados voltaram-se para mim, enormes e vagos, numa espécie de cegueira, uma branca oscilação no fundo das órbitas, que se apagava devagar. O homem parecia jovem - quase um garoto - mas os senhores sabem que com eles é difícil precisar. Não me ocorreu fazer mais nada além de oferecer-lhe um de meus bons biscoitos suecos que tinha no bolso. Os dedos fecharam-se vagarosamente sobre ele e assim ficaram - não houve outro movimento, nem outro olhar. Ele havia amarrado um pedaço de tecido branco de lã no pescoço - por quê? Onde o arranjara? Era um emblema - um ornamento - um talismã - ato propiciatório? havia, enfim, alguma ideia ligada a ele? Causava espanto ver, em torno de seu pescoço negro, aquele pedaço de tecido branco de lã vindo de além-mar.
    Perto da mesma árvore, mais dois feixes de ossos agudos estavam sentados com as pernas cruzadas para cima. Um, com o queixo apoiado nos joelhos, olhava para o vazio, de um jeito intolerável e assutador: seu irmão fantasma descansava a testa, como que vencido por um grande cansaço; e os demais encontravam-se dispersos em todo tipo de pose contorcida, como num quadro de algum massacre ou de vítimas de uma epidemia. Enquanto eu permanecia ali, paralisado pelo horror, uma dessas criaturas apoiou-se sobre as mãos e os joelhos e caminhou de quatro até o rio para beber. Utilizou as mãos para saciar a sede, então sentou à luz do sol, cruzando as canelas na frente, e depois de um tempo deixou a cabeça toda cair sobre o osso do peito."

O Coração das Trevas, Joseph Conrad.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_Livre_do_Congo


sábado, 23 de agosto de 2014

"A conquista da Terra, o que na maior parte significa tirá-la daqueles que têm uma fisionomia diferente ou narizes ligeiramente mais achatados do que os nosso, não é uma coisa bonita quando você olha demais para ela. (...)"

"Recordo que, certa vez, encontramos um barco de guerra ancorado na costa. Não havia sequer um barraco lá, e estava bombardeando a mata. Aparentemente, os franceses estavam empenhados em mais uma de suas guerras pelos arredores. Seu pavilhão drapejava flácido como um trapo.; as bocas dos canhões de seis polegadas estendiam-se à frente ao longo de todo o casco inferior; as ondas densas e escorregadias balançavam-no preguiçosamente para cima e para baixo, fazendo oscilar seus finos mastros. Na imensidão vazia de terra, céu e mar, lá estava ele, incompreensível, bombardeando o continente. Bum!, soava uma das armas de seis polegadas; uma chama breve dardejava e esmaecia, desprendendo uma fumacinha branca que logo desaparecia, um projétil diminuto dava um fraco estalido - e nada acontecia. Nada poderia acontecer. Havia um toque de insanidade no procedimento, uma sensação de comicidade lúgubre no que estava se passando, E não se dissipou quando alguém a bordo assegurou-me sinceramente de que havia ali um acampamento de nativos - chamava-os de inimigos! - oculto em algum ponto da selva.(...)"

O Coração das Trevas, Joseph Conrad.

domingo, 3 de agosto de 2014

"Exposição perante a massa

A transformação do modo de exposição pela técnica da reprodução é visível também na política. A crise da democracia poder ser interpretada como uma crise nas condições de exposição do político profissional. As democracias expõem o político de forma imediata, em pessoa, diante de certos representantes. O Parlamento é seu público. Mas, com as inovações nos aparelhos de gravação, que permitem ao orador durante a sua fala ser ouvido por um número ilimitado de pessoas e, pouco depois, ser visto por um número ilimitado de pessoas, a exposição do político diante dos aparelhos passa ao primeiro plano, Com isso os parlamentos se atrofiam, juntamente com o teatro, o rádio e o cinema não modificam apenas a função do intérprete profissional, mas também a função de quem se representa a si mesmo diante desses dois veículos de comunicação, como é o caso do político, O sentido dessa transformação é o mesmo no ator de cinema e no político, qulquer que seja a diferença entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo é tornar "mostráveis", sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las, da mesma forma como o esporte o fizera antes, sob certas condições naturais. Esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeão, o astro e o ditador. "

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1º versão), Walter Benjamin, 1935 / 1936


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