sexta-feira, 26 de setembro de 2014

    Brasília canta em seu hino: "Brasília, capital da esperança!". Uma cidade que nasceu moderna e arrojada arquitetonicamente pelas mãos de Oscar Niemeyer, que era o ápice do ufanismo patriótico do final dos anos 50, a década em que o Brasil ganhava o mundial de futebol na Suécia e, nas ruas, entoava-se "a taça do mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa". Simbolizou as esperanças de um novo país, um país aberto ao "novo", novo que se espalharia fatalmente ao restante do país, em contraste com o "velho". Entretanto, hoje, Brasília como esse sonho está morta, ou melhor, nasceu natimorta, virou uma cidade como qualquer outra, talvez refletindo os próprios sonhos frustrados do Brasil. Por quê?
    Marilena Chaui, no clássico "Brasil, mito fundador e sociedade autoritária", apresenta a atmosfera daquela época, no que ela chama de "verdeamarelismo". De acordo com ela, tal ideologia era originalmente advogada pelos grandes proprietários rurais, e advogava o mito do "país essencialmente agrário", isto é, um país cuja função era puramente agrária, sem qualquer chance de um dia se industrializar e competir com os países centrais. Daí o descaso e mesmo a aversão do governo da República Velha a qualquer tipo de industrialização incipiente. Com a derrubada da classe ruralista do poder por Vargas e a industrialização acelerando-se de 1930 para cá, tal ideologia foi substituída pelo nacional-desenvolvimentismo. Agora, o Brasil não é mais um país agrário, que devia depender conscientemente dos grandes países industriais, o Brasil agora deveria se industrializar numa "dependência tolerada", isto é, devíamos aceitar "por enquanto" a dependência tecnológica até, um dia, alcançarmos o mesmo estágio deles. Daí Juscelino Kubitschek e seu incentivo ao grande capital internacional para se estabelecer por aqui, nomeadamente as indústrias automobilísticas, símbolos do progresso (ainda hoje).  
    Brasília, portanto, era o coroamento desse nacional-desenvolvimentismo, o símbolo visível do "Brasil Grande", o Brasil prestes a se tornar uma potência mundial. De fato, foi erguida no meio do nada uma cidade inteira, e num tempo quase inacreditável, cerca de três anos, o que mostrava claramente a superioridade e a força do brasileiro perante o mundo, assim dizia o discurso oficial. Porém, todo esse discurso era equivocado, senão cínico, desde o berço.
   Primeiro porque, na região onde a futura capital iria ser construída, não havia nenhum deserto despovoado, sem ocupação humana e, portanto sem história, havia sim cidades, na verdade três cidades Luziânia, a mais antiga, Formosa, Planaltina e um núcleo rural que, mais tarde também viraria cidade, Brazlândia. Estudos indicam que a região do Distrito Federal já registrava ocupação humana há pelo menos 2000 anos. No período colonial, a região era cortada pela Estrada Real, isto é, o caminho que ia das minas de ouro de Mato Grosso e Goiás rumo ao Rio de Janeiro. Foi exatamente por este movimento que criaram-se tais cidades, além de outras igualmente importantes como Pirenópolis e a própria cidade de Goiás, terra de Cora Coralina.
    Mas isso não é tudo: a própria cidade já nasceu reproduzindo exatamente o mesmo país autoritário e opressor do qual fazia parte. Nada havia de idílico por aqui: milhares de operários, chamados candangos, eram vítimas diárias de uma praticamente semi-escravidão por parte das construtoras e dos políticos, que frequentemente os obrigava a trabalhar inclusive de madrugada (lembrem-se que naquele tempo, a luz elétrica ainda era praticamente um artigo de luxo), em turnos que não raro iam pelo dia e a noite ininterruptamente. Dezenas morreram em virtude das péssimas condições de trabalho, os sobreviventes (e aqui vai meu testemunho pessoal, eu, neto desses candangos) relatavam que era frequente operários caírem de dezenas de metros de altura e, assim que isso acontecia, os capatazes pegavam os corpos despedaçados dos infelizes, colocavam em carrinhos de mão e sepultavam em local ignorado, possivelmente onde hoje se localiza o bairro chamado Asa Norte, tal como os nazistas apenas alguns anos antes. Há inclusive lendas populares a relatarem que muitos eram simplesmente colocados nas paredes dos prédios tal como o Congresso Nacional e ali mesmo concretados e "sepultados". Mas não pensem que os candangos aceitavam tal coisa passivamente: das revoltas operárias, a mais famosa, chamada postumamente de "massacre da Pacheco Fernandes" (pois este era o nome de uma das construtoras) colocou em evidência toda a mentira do país ufanista. Nunca ouviu falar dela nos livros de história? é claro, o caso foi abafado rapidamente, e apenas sobrevive nas memorias dos feridos e sobreviventes. Ignora-se o quantidade de mortos mas, pelo testemunho deles, que sempre falam em "metralhadoras" e "caminhões-caçamba" para transportar os mortos, certamente não foram poucos. 
    Logo após a inauguração da "Capital da Esperança", o mundo inteiro prestou tributo à cidade nascedoira, o símbolo de uma nova era. A classe dominante brasileira orgulhou-se imensamente de "seu" feito extraordinário, como se fossem eles a colocarem a mão na massa. Era preciso agora colocar o plano em marcha. E qual era esse plano? muito simples: os operários, todos eles, deviam voltar para suas terras, e deixarem Brasília, porque no esquema a cidade foi feita unicamente para essa mesma classe dominante. Pobres, apenas os serviçais que trabalhassem para eles e fossem estritamente necessários. Ninguém pensou em como alojar os candangos trabalhadores DEPOIS da construção, pois realmente levavam a sério um plano tão ridículo, como se as pessoas fizessem suas vidas durante três anos e, do nada, largassem tudo apenas porque eles queriam. É nesse momento que o sonho de Brasília começou a ruir: os candangos resistiram o quanto puderam aos massacres e genocídios dessa elite para continuarem morando nos mesmos barracos, pejorativamente chamados de "invasões", que nada mais eram que os antigos acampamentos dos candangos enquanto construíam os prédios. Dezenas foram mortos e milhares foram expulsos, mas também milhares resistiram (e estão até hoje, formando bairros como Vila Planalto e Vila Telebrasília)  até que, por fim o governo, já o militar instalado a partir de 64, reconheceu que, tinha que ceder a tanta pressão popular, e começou a oferecer remanejamento aos antigos candangos e suas famílias para novas cidades, chamadas "cidades-satélites". Para lá foram (ou melhor, foram obrigados a ir) e enfim puderam ter seu cantinho. MAS havia um porém: o Plano Piloto (isto é, Brasília propriamente dita, o "avião" que aparece no mapa) devia ser reservado única e exclusivamente à classe rica, dito de outro modo: as cidades-satélites foram construídas a dezenas de quilômetros do centro da cidade, localizando-se a 20, 30, 40 ou mesmo a 60 km. A ditadura militar deixou como herança um verdadeiro Muro de Berlim, a separar os ricos dos pobres, hierarquizando e segregando a população dentro do mesmo Distrito Federal, não muito diferente da política do Apartheid sul-africano, como claramente visto no documentário "invasores ou excluídos", feito alguns anos atrás pelo pessoal da UNB (Universidade Nacional de Brasília).
    Qual o resultado dessa política para Brasília? uma cidade segregada por cor, classes sociais, por educação, enfim por muralhas invisíveis de exclusão. Ao mesmo tempo que Brasília possui o bairro mais rico do Brasil e até mesmo do mundo, o Lago Sul, reduto dos políticos e empresários mais abastados, possuímos mesmo ao lado favelas gigantescas como o Sol Nascente, que recentemente se tornou a maior favela da América do Sul, superando a Rocinha, no Rio de Janeiro.  Um dos sintomas mais claros disso é o que, mesmo em Brasília, é visto como algo positivo, porém, a meu ver, é extremamente negativo: o tombamento de Brasília como patrimônio da humanidade. Por que negativo? porque Brasília foi criada para ser e encarnar o novo, e o novo, essencialmente, é mutável, pois sempre está aberto a novas experiências. Portanto, se Brasília é o local do novo enquanto experiência, assim deveria ser, um grande laboratório a céu aberto. Mas não foi assim: a classe rica, deslumbrada pela "obra de suas mãos", numa cidade criada para ela, em suma, "perfeita", quis cristalizar para todo o sempre tal maravilha. E o tombamento assim pode ser entendido: como a cristalização de um determinado momento histórico da cidade para todo o sempre. Quiseram acordar de manhã e contemplar a beleza da vista da cidade. Só existe um porém: para desfrutarem da bela vista, era preciso retirar tudo que de desagradável pudesse maculá-la. E nada macula mais uma bela vista do que a visão terrífica de favelas. Solução? disse acima: construíram as satélites bem longe das vistas, a quilômetros e quilômetros de distância, aonde eles não pudessem ser vistos. Foram todos "escondidos". Uma verdadeira "limpeza étnica". De posse da arma do tombamento, agora tinham legitimidade para combater o avanço inevitável das favelas sobre a "beleza arquitetônica" da Capital da Esperança, e expulsá-las o mais longe possível. O tombamento, portanto, é um instrumento que visa auxiliar a guerra social e o extermínio (em todos os sentidos: educacional, intelectual, cultural etc) da periferia pela playboyzada.
    A cristalização de Brasília para atender os desejos da classe dominante, ignorando completamente as consequências futuras de tal desejo insano, só poderia levar a um resultado, constatado pela CODEPLAN (Companhia de Planejamento do DF): a imensa pressão populacional sobre o Distrito Federal. Pelos planos de Lúcio Costa, a previsão é que Brasília não tivesse mais do que 500 mil habitantes no ano 2000. Em 2013, o DF sozinho possui mais de 2 milhões e, se juntar com o "Entorno", isto é, as cidades goianas fora do território do Distrito Federal, dá seguramente mais de 3 milhões. E, segundo a CODEPLAN, apenas dentro do território do DF, 80% das habitações são "irregulares", um eufemismo para invasão de áreas públicas e parcelamento de áreas particulares, sem qualquer tipo de estudo de impacto ambiental ou um mínimo de planejamento urbano decente. A cristalização da cidade para que uma minúscula parcela pudesse aproveitá-la, ignorando os desejos e necessidades da imensa maioria invisibilizada, ou melhor, existente apenas quando precisa se deslocar mais de 100 km todos os dias para ir trabalhar no único lugar onde há trabalho, o centro de Brasília, gerando engarrafamentos gigantescos de manhã e à noite (um dia, Brasília foi dita como "a cidade que não tinha engarrafamentos", e é curioso notar como volta e meia sempre surge alguém a dizer que a culpa é dos pobres que "agora acham que podem comprar carro") criou uma verdadeira tragédia. Valparaíso, uma cidade do entorno, em uma recente reportagem, foi apontada como a região mais violenta do mundo, superando mesmo a América Central com seus índices assustadores de homicídios. Muito longe do utópico sonho de "Brasília, Capital da Esperança".
    Como se pode ver, o sonho dourado, no qual Brasília era a cereja no bolo, já não existe mais. Brasília, longe de representar um novo Brasil, agora está a caminho, se já não o fez, de se tornar como qualquer outra grande cidade brasileira, mergulhada na desigualdade e na violência social entre as classes. De qualquer forma, era impossível fazer algo novo com uma mentalidade antiga, uma mentalidade fortemente autoritária e conservadora herdado do nosso passado colonial, tal como Raimundo Faoro disse em "Os Donos do Poder", "colocando vinho novo em odres velhos", como diz a bíblia. Brasília fracassou e, com ela, o Brasil. Mas será o fracasso permanente? não. O fracasso faz parte da vida. Ele deve servir como lição para o futuro.

"Lembre-se dos dois benefícios do fracasso. Primeiro, se você fracassa, você aprende o que não funciona; e segundo, o fracasso dá a você a oportunidade para tentar um novo caminho."

Roger Von Oech

Fontes:

CHAUI, Marilena. Brasil, Mito fundador e sociedade autoritária.

O massacre da Pacheco Fernandes. Disponível em: <http://doc.brazilia.jor.br/Construcao/GEB-massacre-Pacheco-Fernandes.shtml>

Invasores ou excluídos completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ic3Vms_4fDQ>.

Cidades do Entorno estão entre as mais perigosas do Brasil. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2013/07/18/interna_cidadesdf,377796/cidades-do-entorno-do-df-estao-entre-as-mais-perigosas-do-brasil.shtml>

Quase 80% das casas são irregulares. Disponível em: <http://www.jornaldebrasilia.com.br/noticias/cidades/500544/quase-80-das--casas-sao---irregulares/>

Fantástico do dia 29/05, Valparaíso de Goiás, entre as mais violentas do mundo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fNQfnzEChno>



terça-feira, 23 de setembro de 2014

    Um dos sintomas da forte hierarquização social da sociedade brasileira é o uso generalizado do "você": ele é uma corruptela do pronome de tratamento "Vossa Mercê". Quando o usamos, significa que estamos a considerar a pessoa como sendo, de alguma forma, superior a nós, seja em questão de idade, seja em questão de nível social, seja sob outra forma. Ainda hoje, em Portugal, tal pronome é usado nesse sentido apenas. Quando se é íntimo de alguém ou se quer soar como próximo, familiar, usa-se o "tu" que, para nós, só encontramos na linguagem bíblica ("Vós sois, Senhor, o Poderoso de Jacó"). Antes do branqueamento europeu do século XIX, a imensa maioria da população era composta por negros, escravos ou libertos. Para se referir a qualquer branco, rico ou não, senhor ou estranho, usavam o "vosmecê" (lembrem da novela Xica da Silva), depois "você". Nós, descendentes desses escravos, recebemos esse linguajar como herança de séculos de exploração de nossos antepassados, que se infiltrou inclusive na alta classe, destoando totalmente de Portugal. Mas, como essa hierarquização social já foi naturalizada, de modo que está diante de nossos olhos e não a vemos, ou melhor, a negamos, tendemos a achar natural referir-se a todos como "você". Mas ela está aí e é fácil de constatar porque sempre implica violência: na infância ("sou contra a lei da palmada, criança não tem querer, e se contestar tem que apanhar!"), na adolescência ("Aluno não tem que mandar em nada, o professor é quem manda e sabe tudo, aluno tem que ficar calado!"), na vida adulta ("aqui quem manda sou eu, o patrão, empregado não tem que dar pitaco em nada"), e por fim na velhice ("os aposentados são vagabundos", disse o FHC na presidência). Militarização da segurança pública, violência policial, oposição conservadora da playboyzada contra a ascensão social dos mais pobres, ao bolsa-família, ao prouni, ao mais médicos, recusa em dividir espaço no aeroporto, na universidade etc com eles, cassação da cidadania brasileira a quem recebe benefícios sociais, tudo isso são apenas sintomas dessa hierarquização, onde o rico sabe o seu lugar na sociedade, e é encima, e o pobre também, e é embaixo, e um não se mistura com o outro, exceto profissionalmente (relações patrão-empregado, cliente-empregado) entretanto desde o plano real tal hierarquização vem sendo solapada, e os ricos sentem seu terriótorio cada vez mais invadido pelos de baixo, até o ponto da esquizofrenia total, fácil de constatar na internet com teorias como o Brasil estando prestes a ser invadido e anexado por Cuba, os EUA pela Coreia do Norte, manifestações pedindo um golpe militar, o PT tramando um golpe comunista a qualquer momento, o MEC estando sob controle de uma sinistra conspiração judaico-comunista do clube de Bildeberg, cada professor de filosofia e história desse país ser um doutrinador disfarçado do comunismo/marximo, como a Viviane Mosé disse um dia desses na CBN etc.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

"Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como “cultura senhorial”, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e as simetrias são sempre
transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação. Enfim, quando a desigualdade é muita marcada, a relação social assume a forma nua da opressão física e/ou psíquica. A divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas que ocultam a determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da dominação, e que, imaginariamente, estruturam a
sociedade sob o signo da nação una e indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a constituem. Porque temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária e que dela provêm as diversas manifestações do autoritarismo político.
Quais os traços mais marcantes dessa sociedade autoritária? Resumidamente, diremos ser os seguintes:
- estruturada pela matriz senhorial da Colônia, disso decorre a maneira exemplar em que faz operar o princípio liberal da igualdade formal dos indivíduos perante a lei, pois no liberalismo vigora a idéia de que alguns são mais iguais do que outros. As divisões sociais são naturalizadas em
desigualdades postas como inferioridade natural (no caso das mulheres, dos trabalhadores, negros, índios, imigrantes, migrantes e idosos), e as diferenças, também naturalizadas, tendem a aparecer ora como desvios da norma (no caso das diferenças étnicas e de gênero), ora como perversão ou monstruosidade (no caso dos homossexuais, por exemplo). Essa naturalização, que esvazia a gênese
histórica da desigualdade e da diferença, permite a naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis de violência, pois estas não são percebidas como tais;
- estruturada a partir das relações privadas, fundadas no mando e na obediência, disso decorre a recusa tácita (e às vezes explícita) de operar com os direitos civis e a dificuldade para lutar por direitos substantivos e, portanto, contra formas de opressão social e econômica: para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. Por esse motivo, as leis são
necessariamente abstratas e aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para ser transgredidas e não para ser cumpridas nem, muito menos, transformadas;
- a indistinção entre o público e o privado não é uma falha ou um atraso que atrapalham o progresso nem uma tara de sociedade subdesenvolvida ou dependente ou emergente (ou seja, lá o nome que se queira dar a um país capitalista periférico). Sua origem, como vimos há pouco, é histórica, determinada pela doação, pelo arrendamento ou pela compra das terras da Coroa, que, não dispondo de recursos para enfrentar sozinha a tarefa colonizadora, deixou-a nas mãos dos particulares, que, embora sob o comando legal do monarca e sob o monopólio econômico da metrópole, dirigiam senhorialmente seus domínios e dividiam a autoridade administrativa com o
estamento burocrático. Essa partilha do poder torna-se, no Brasil, não uma ausência do Estado (ou uma falta de Estado), nem, como imaginou a ideologia da “identidade nacional”, um excesso de Estado para preencher o vazio deixado por uma classe dominante inepta e classes populares atrasadas ou alienadas, mas é a forma mesma de realização da política e de organização do
aparelho do Estado em que os governantes e parlamentares “reinam” ou, para usar a expressão e Faoro, “são donos o poder”, mantendo com os cidadãos relações pessoais de favor, clientela e tutela, e praticam a corrupção sobre os fundos públicos. Do ponto de vista dos direitos, há um encolhimento do espaço público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do
espaço privado.
- realizando práticas alicerçadas em ideologias de longa data, como as do nacionalismo militante apoiado no “caráter nacional” ou na “identidade nacional”, que mencionamos anteriormente, somos uma formação social que desenvolve ações e imagens com força suficiente para bloquear o trabalho dos conflitos e das contradições sociais, econômicas e políticas, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira. Isso não significa que conflitos e contradições sejam ignorados, e sim que recebem uma significação precisa: são sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece como resposta única a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral.
Em suma, a sociedade auto-organizada, que expõe conflitos e contradições, é claramente percebida como perigosa para o Estado (pois este é oligárquico) e para o funcionamento “racional” do mercado (pois este só pode operar graças ao ocultamento da divisão social). Em outras palavras, a classe dominante brasileira é altamente eficaz para bloquear a esfera pública das ações sociais e da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. Esse bloqueio não é um vazio ou uma ausência, isto é, uma ignorância quanto ao funcionamento republicano e democrático, e sim um conjunto positivo de ações determinadas que
traduzem uma maneira também determinada de lidar com a esfera da opinião: de um lado, os mass media monopolizam a informação, e, de outro, o discurso do poder define o consenso como unanimidade, de sorte que a discordância é posta como perigo, atraso ou obstinação vazia;
- por estar determinada, em sua gênese histórica, pela “cultura senhorial”34 e estamental que preza a fidalguia e o privilégio e que usa o consumo de luxo como instrumento de demarcação da distância social entre as classes, nossa sociedade tem o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se depreende do uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível
pertinência de sua atribuição (o caso mais corrente sendo o uso de “doutor” quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior e “doutor” é o substituto imaginário para antigos títulos de nobreza), ou da manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento (ou diminuição) de prestígio e de status, ou, ainda, como se nota na grande valorização dos diplomas que credenciam atividades não-manuais e no conseqüente desprezo pelo trabalho manual, como se vê no enorme descaso pelo salário mínimo, nas trapaças no cumprimento dos insignificantes direitos trabalhistas existentes e na culpabilização dos desempregados pelo desemprego, repetindo indefinidamente o padrão de comportamento e de ação que operava, desde a Colônia, para a desclassificação dos homens livres pobres. A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a existência de milhões de crianças sem infância - conforme definição de José de Souza Martins - e a exploração do trabalho dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos milhões de desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos miseráveis. A existência de crianças sem infância é vista como tendência natural dos pobres à vadiagem, à mendicância e à  criminalidade. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e à ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham fora, se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais, são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.
O Brasil ocupa o terceiro lugar mundial em índice de desemprego, gasta por volta de 90 bilhões de reais por ano em instrumentos de segurança privada e pública, ocupa o segundo lugar mundial nos índices de concentração da renda e de má distribuição da riqueza, mas ocupa o oitavo lugar mundial em termos do Produto Interno Bruto. A desigualdade na distribuição da renda - 2% possuem 98% da renda nacional, enquanto 98% possuem 2% dessa renda - não é percebida como forma dissimulada de apartheid social ou como socialmente inaceitável, mas é considerada natural e normal, ao mesmo tempo que explica por que o “povo ordeiro e pacífico” dispende anualmente fortunas em segurança, isto é, em instrumentos de proteção contra os excluídos da riqueza social.
Em outras palavras, a sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes. O autoritarismo social, que, enquanto “cultura senhorial”, naturaliza as desigualdades e exclusões socioeconômicas, vem exprimir-se no modo de funcionamento da política. Quando se observa a história econômica do país, periodizada segundo a ascensão e o declínio dos ciclos econômicos e, portanto, segundo a subida e a queda de poderes regionais, e quando se observa a história política do país, em que o poderio regional é continuamente contrastado com o poder central, que ameaça as regiões para assegurar a suposta racionalidade e necessidade da centralização, tem-se uma pista para compreender por que os partidos políticos são associações de famílias rivais ou clubs privés das oligarquias regionais. Esses partidos arrebanham a classe média regional e nacional em torno do imaginário autoritário, isto é, da ordem (que na verdade nada mais é do que o ocultamento dos conflitos entre poderes regionais e poder central, e ocultamento dos
conflitos gerados pela divisão social das classes sociais), e do imaginário providencialista, isto é, o progresso. Mantêm com os eleitores quatro tipos principais de relações: a de cooptação, a de favor e clientela, a de tutela e a da promessa salvacionista ou messiânica.
Posta no momento em que o mito fundador produz a sagração do governante, a política se oculta sob a capa da representação teológica, oscilando entre a sacralização e a adoração do bom governante e a satanização e a execração do mau governante. Isso não impede, porém, que, com clareza meridiana, as classes populares percebam o Estado como “o poder dos outros” - a expressão
é de Teresa Caldeira - e tendam a vê-lo apenas sob a face do poder Executivo, os poderes Legislativo e Judiciário ficando reduzidos ao sentimento de que o primeiro é corrupto e o segundo, injusto. A identificação do Estado com o Executivo, a desconfiança em face do Legislativo (cujas atribuições e funções não estão claras para ninguém, e cuja venalidade escandaliza, levando a difundir-se a idéia de que seria melhor não o ter) e o medo despertado pelo poder Judiciário (por ser a seara exclusiva dos letrados ou doutores, secreto e incompreensível), somados ao autoritarismo social e ao imaginário teológico-político, instigam o desejo permanente e um Estado forte para a “salvação
nacional”. Isso e reforçado pelo fato de que a classe dirigente instalada no aparato estatal percebe a sociedade como inimiga e perigosa, e procura bloquear as iniciativas dos movimentos sociais, sindicais e populares."

Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, Marilena Chaui.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

                                                    Reflexões Avulsas

Querem saber quais são as coisas mais importantes e prioritárias nesse país? observem a constituição. Primeiro de tudo o Estado (títulos III ao V, mais da metade do texto!), daí a imensa e parasitária burocracia e complexidade por exemplo para abrir uma empresa e pagar impostos. O país vive para o Estado, não o Estado para o país; depois a atividade econômica (título VII), que incluem banqueiros e grandes empresários bilionários. Sem a corrupção, propinas e suas "doações eleitorais" aos partidos, é impossível a parasitária burocracia estatal se manter, ao mesmo tempo que é impossível ser empresário bilionário e aparecer na Forbes sem fraudar quase todas a licitações estatais e mamar nas tetas das dezenas de incentivos estatais na forma de subsídios e financiamentos facilitados; só lá no final, no distante título VIII, é que aparece a ordem social, com a "preocupação" com a saúde, a educação, cultura, desportos etc. Vejam que o recado é claro: a "ordem social" não é prioridade no Brasil, quando muito aparece no fim da fila e olhe lá. Só vai ficar com as migalhas de atenção e dinheiro que porventura sobrar das áreas mais importantes. Vendo por essa ótica, não parece mais estranho que a saúde fique jogadas aos cantos dos hospitais, a educação seja na base do mimeógrafo como na minha cidade, os presídios não recuperem ninguém, pelo contrário, são masmorras, que os idosos sejam desrespeitados pelos mais novos, que seja visto como normal crianças serem espancadas e xingadas de filha da puta pelo pai e mãe, que ninguém goste da lei da palmada, que a cultura e o esporte, mesmo o profissional e olímpico, não tenham apoio algum etc, concordam?

Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

sábado, 6 de setembro de 2014

                                             O Poder do Voto Nulo

    Frequentemente, ataca-se o voto nulo como uma opção inválida de voto. Diz-se que ele é inútil, pois nenhum resultado fará na contagem dos votos, ou diz-se que ele na verdade é um auxílio à eleição de ladrões na política. Portanto, não passa de burrice e besteira. O que tem de verdade nisso tudo?
    De fato, o voto nulo é inútil no sistema eleitoral brasileiro; ele não conta como voto válido, assim como a opção "branco". Portanto, não importa a quantidade de votos brancos e nulos, se houver um único voto válido que seja, esta eleição será considerada válida. Tal diz a lei. E daí? devemos lembrar que esta regra foi criada pelos políticos e para os políticos, obviamente visando seus interesses pessoais. Então, eles não poderiam se dar ao luxo de deixar uma brecha dessas escancarada por aí, pois o sistema deve ser armado  de tal maneira que não haja qualquer chance de defesa ao eleitor, tal como um homem apunhalado quando jaz caído na terra. Isso explica por exemplo o voto obrigatório, porque se se der chance de ir ou não votar ao eleitor, seria preciso aumentar enormemente o valor das propinas pagas, para "convencê-lo" a ir votar. Obrigando-o, tudo que é preciso é usar de técnicas simples de manipulação, com cartazes, propaganda etc para fazê-lo votar em alguém, porque ele por lei já está arrestado para a urna. O sistema se autopreserva a si mesmo.
    Bom, mas se se está forçado a ir ter com a urna, ao menos temos escolha: podemos votar em alguém ou não. De acordo com alguns, só existe a opção de votar em alguém pois, se não se votar (em alguém), você ajuda a eleger os piores candidatos, pois estará renunciando a esta "opção" de votar em alguém. Que espécie de lógica é esta? primeiro: Em QUALQUER ESCOLHA, existem duas opções: a opção de fazer ou não fazer. Isso é imutável, vale para qualquer escolha. É simplesmente ridículo descartar a opção de não fazer, e exigir validade apenas à opção de fazer. Se qualquer uma dessas duas opções for cortada, então já não é escolha, é obrigação. A Igreja Católica afirma que o celibato clerical é uma "escolha", no entanto, no rito latino, se alguém quiser ser padre, é OBRIGADO a ser celibatário. Como é possível o celibato ser uma escolha se você não têm a opção de ser padre e não-celibatário? torna-se portanto mera obrigação, chamem como quiserem. Da mesma forma o voto: para ser de fato uma escolha, é imprescindível você ter a opção de votar em alguém ou não votar em ninguém. Logo, o voto nulo ou mesmo branco é não apenas justo, como indispensável para uma verdadeira opção consciente.
    Mas, como dito acima, o voto nulo não conta como voto válido, logo na prática é totalmente inócuo. Será? embora a lei formada à revelia do cidadão descarte sua "utilidade", será mesmo "inútil"? digo que não. Ainda que tenham despojado o voto de qualquer consequência prática, lei alguma pode retirar sua, a meu ver, principal "utilidade": o simbolismo. O simbolismo é dizer: "Ei, eu não concordo com estas escolhas que deram-me para votar, portanto não votarei em ninguém. Melhor ainda, não concordo com o próprio sistema eleitoral e RECUSO-ME A PARTICIPAR." Este é o simbolismo do voto nulo: anulando, você está recusando-se a participar do atual sistema, um sistema no qual os candidatos são dados prontos e acabados, pois foram todos escolhidos pelos partidos, sem qualquer tipo de participação popular verdadeira a não ser a choldra de figurões na convenção. Você se recusa a apenas ter que escolher pessoas que outros (interesses) escolheram para você.  Você se recusa a participar de um sistema eleitoral criado pelo general Golbery do Couto e Silva, esse câncer plantado no coração da democracia na época da ditadura, e que não sofreu qualquer mudança mais substancial em quase 30 anos de liberdade democrática. E, isso, lei alguma pode proibir o simbolismo poderoso do voto nulo, por mais que tentem.
    O voto nulo, portanto, foi mutilado desde o berço por ameaçar todo o sistema eleitoral, feito sob medida para ladrões e malfeitores se perpetuarem na política. Porém, por mais que tentassem, jamais conseguiram retirar o simbolismo dele. Continuamos então com uma escolha, arranhada, mas verdadeira: podemos escolher alguém para ser o salvador da pátria, crendo ingenuamente que o problema está na ética pessoal do candidato, e não num sistema em que, não importa o quão ética é a pessoa, ela é obrigada a ser corromper porque o sistema assim exige, e sermos ingênuos a vida inteira, ou podemos aceitar a dura e fria realidade de que é o sistema, e não as pessoas, que está errada desde o início, sendo portanto "ingenuidade pedir àqueles que detém o poder para que mudem o poder" (Giordano Bruno).

Fontes

O Príncipe, Maquiavel.
Discurso sobre a Servidão Voluntária, La Boétie.
http://super.abril.com.br/cultura/adianta-votar-nulo-446574.shtml
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