sábado, 29 de novembro de 2014

O ISLÃO NA EUROPA

Este é o título de um livro, de autoria da catedrática da Universidade do Minho, Maria do Céu Pinto, a respeito da situação do islão em solo europeu. Infelizmente, parece-me que o livro não é vendido no Brasil, pelo que quero aqui fazer uma breve resenha do seu conteúdo, porque tive uma grata surpresa ao viajar de férias (que eu estava merecendo, por sinal) à Terrinha, e comprar por acaso este livro na estação do metro de Saldanha, e deparar-me com um conteúdo de altíssimo nível, e diria fundamental para nós, aqui nos trópicos, conhecermos afinal o que se passa na Europa com a "ameaça" do islamismo, tão propaganda aos quatro ventos pela ultradireita radical por aqui, que rejeita fortemente qualquer menção aos estudos a sério, exceto os "estudos" de seus ídolos como Olavo de Carvalho.
O livro começa com um texto introdutório, sobre a trajetória moderna do islão, desde a imigração nos anos 70 até os dias atuais, e é dividido em capítulos, cada um deles falando detalhes da situação do islão em um determinado país europeu, a saber: França, Grã-Bretanha, Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Bélgica, Escandinávia (Dinamarca, Suécia e Noruega), Países Baixos e Balcãs (com ênfase na Bósnia-Herzegovina), cada um escrito por um catedrático universitário.
Em primeiro lugar, o que fica claro logo à vista é que a relação da Europa com o islão de maneira alguma é algo recente: vem desde pelo menos o início do próprio muçulmanismo. E, nos países em que houve tal presença história, o livro faz questão de abordar e comparar o islão passado e o presente, junto às contribuições históricas da religião inclusive na cultura e na língua (o famoso espagete italiano têm raízes árabes, essa eu não sabia). Portanto, isso desqualifica todas as tentativas de taxar o islão como "invasão", ou "destruição da cultura nacional"; com efeito, o próprio islão é parte inegável da "cultura nacional" de vários países como Portugal e Espanha, assim como o fantasioso argumento do papa Bento XVI de recusar a entrada da Turquia na UE alegando "preservação das raízes cristãs da Europa". Se fosse levado a sério, seria necessário arrancar a Bósnia-herzegovina e a Albânia, predominantemente islâmicos, da Europa de alguma forma...
À medida que toma-se contacto com a situação das modernas comunidades muçulmanas, outra coisa fica clara: o islão não é algo monolítico, muito menos estático, o que alimenta preconceitos vários como achar que qualquer um um muçulmano é um fanático pronto a se explodir pela religião. O islão nos próprios países de origem dos imigrantes, como Iraque, Síria ou Marrocos, é uma fantástica constelação de ideias e vertentes muito diferentes, e inclusivamente até opostas, tal como entre católicos e evangélicos ou mórmons. As comunidades imigrantes na Europa refletem isso, com o adicional de, ao contrário de uma comunidade tradicional de imigrantes, o que os une é mais a religião que a nacionalidade, então entra a componente étnica no meio, tornando os bairros extremamente plurais e multivariegados. Há portanto muçulmanos fundamentalistas, seculares e, entre estes, os "muçulmanos não-praticantes", tal como aqui também há evangélicos e católicos não-praticantes.
Assim sendo, então não é possível meter todos os muçulmanos no mesmo saco e imaginar que são todos iguais, não são, e isso invalida completamente a tese, tão à gosto da direita esquizofrência, de que há em marcha algum tipo de plano secreto de islamização da Europa, deliberado e pré-concebido nos mínimos detalhes. E, exatamente por isso mesmo, o relacionamento entre as comunidades imigrantes e os nativos varia muito, indo desde uma relativa harmonia como na Holanda e Bélgica, até tensões abertas, como na Grã-Bretanha e França. A autora identifica duas formas de abordagem: o multiculturalismo, predominante nesta última, e a integração, dominante em França. O multiculturalismo consiste em dar grande autonomia e autogoverno às comunidades, e o integracionismo consiste em assimilar as comunidades para que se integrem à nação, diluindo-as no seio da cultura nativa. Ela afirma que o multiculturalismo tem como ponto fraco a pouca abertura tanto dos nativos com os imigrantes quanto vice-versa, criando guetos, ao passo que o integracionismo é criticado pela tentativa de minar através da uniformização as legítimas heranças culturais de cada país e do islamismo que poderiam ser extremamente proveitosas.
Também o livro deixa claro a grande influência, inclusive econômica, dos países de origem nas comunidades expatriadas, com vistas meramente políticas, com líderes religiosos inclusive a receber salários oficialmente de países muçulmanos como Irã, Turquia e Arábia Saudita. No islamismo, não há uma forte centralização como no catolicismo, de modo que os governos formam clérigos favoráveis abertamente a governos e os envia a pregar também abertamente a favor de mandatários às comunidades, muitas vezes regimes ditatoriais. Sem dúvida, isto é um fator importante na geopolítica mundial.
Por fim, a autora é honesta e deixa claro que não é possível usar bolas de cristal e tentar prever no que isto tudo vai dar no futuro. Uma coisa, porém, fica claro: o islão veio à Europa e, ao contrário da intenção inicial, tanto dos imigrantes quanto dos governos que promoveram a imigração, para suprir necessidades obreiras após a segunda guerra mundial, na qual faltavam braços, o islão veio para ficar, e agora é parte inexorável da paisagem europeia.  E, ao contrário das teorias da conspiração estapafúrdias que vê-se no youtube, isto não é coisa do outro mundo, é algo comum e natural, nomeadamente num mundo globalizado. Particularmente, penso que a interação entre o mundo ocidental e o oriental em solo europeu nem levará a um lado nem a outra, mas criará uma coisa nova, uma miscigenação entre duas culturas tão díspares em que, ao mesmo tempo que suscita tensões agudas, as aproxima uma da outra pela convivência e, consequentemente, melhora o conhecimento de uma e outra. A Europa está a passar pelo que a América Latina passou durante a colonização mas, ao contrário do que nós passamos, não é algo forçado e imposto, mas algo acontecendo já com uma grande noção de direitos humanos no meio, e um aceso debate e redefinição dos próprios direitos humanos. Em suma, estamos a ver a história acontecer. Sobre isso, o filósofo Michel Serres, em uma entrevista no program "Roda Viva", já falava, e elogiava o Brasil por ser um laboratório pioneiro nessa questão de choque cultural e convivência relativamente pacífica entre pessoas de origem étnica tão diferentes. Aguardemos o que virá da experiência europeia. Eu sou otimista.

Eduardo Viveiros.


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