Maria Rosa Mística: Sermão XIV com o santíssimo sacramento exposto (1633, Padre António Vieira)
Maria, de qua natus est Jesus, qui
vocatur Christus.
I
Não é coisa nova, posto que grande e singular, que o
Evangelista S. João receba em sua casa a Virgem Mãe de Deus e Mãe sua. Nem é
coisa nova que as festas do mesmo S. João as honre e autorize a Virgem
Santíssima com a majestade e favores de sua presença. Nem é coisa nova,
finalmente, que o que havia de ser panegírico do Evangelista seja sermão do
Rosário. Tudo isto, que já foi em diferentes dias, temos junto e concordado
hoje no concurso da presente solenidade. Não é coisa nova que o evangelista S.
João receba em sua casa a que é Mãe de Deus e sua, porque naquele grande dia,
em que lhe coube por legado no testamento do Redentor do mundo, não com menor
título que de Mãe, a que era Mãe do mesmo Cristo: Ecce Mater tua- logo então, e
desde a mesma hora recebeu S. João a Senhora em sua casa, para nela assistir e
servir, como fez por toda a vida: Et ex illa hora accepit eam discipulus in
sua. - E
isto é o que torna a fazer hoje o mesmo evangelista, porque chamando-se em
frase dos sagrados ritos casa própria de cada um dos santos aquele dia que a Igreja
dedicou à sua celebridade, neste dia e nesta casa recebe hoje S. João a
Senhora, dando-lhe nela o lugar devido, que é o primeiro e principal. Nem é
coisa nova que as festas de S. João as honre e autorize a Virgem Santíssima,
com a majestade e favores de sua presença, porque nas bodas de Caná de Galiléia
o ser S. João o esposo foi a razão de se achar ali a Senhora: Et erat Mater
Jesu ibi.
- E se foi favor da sua piedade e assistência a conversão de água em vinho, não
foi menor graça ou milagre da Virgem das Virgens que S. João, por imitar sua
virginal pureza, renunciasse então o matrimônio, e o convertesse em celibato.
Finalmente, não é coisa nova que o que havia de ser panegírico do Evangelista
seja sermão do Rosário, porque, como se refere nas histórias dominicanas, indo
o patriarca S. Domingos para pregar de S. João em tal dia como hoje, ao tempo
que recolhido a uma capela da mesma igreja se estava encomendando a Deus, lhe
apareceu a Virgem Maria, e lhe mandou que deixasse o sermão que tinha meditado
de S. João, e pregasse o seu Rosário. Fê-lo assim o grande Patriarca dos
Pregadores, e o fruto do sermão que, pelo zelo e eficácia do pregador sempre
costumava ser grande, pela graça e virtude de quem o mandou pregar foi naquela
ocasião muito maior e mais patente com igual proveito e admiração dos ouvintes.
Mas, que fará cercado das mesmas
obrigações, tantas e tão grandes, quem não só falto de semelhante espírito, mas
novo ou noviço no exercício e na arte, é esta a primeira vez que, subido
indignamente a tão sagrado lugar, há de falar dele em público? Vós, soberana
Rainha dos anjos e dos homens, e Mãe da Sabedoria incriada - a quem
humildemente dedico as primícias daquelas ignorâncias que ainda se não podem
chamar estudos, como única protetora deles - pois o dia e assunto é, Senhora,
de vossos maiores mistérios, vos dignais de me assistir com a luz ou sombra da
graça, com que a virtude do Altíssimo, no primeiro de todos, vos fez fecunda:
Ave Maria.
II
Temos hoje - por outro modo do que
já o disse - três dias em uma festa: o dia e a festa de S. João, o dia e festa
da Senhora do Rosário, e o dia e a festa dos pretos, seus devotos. E quando
fora necessário termos também três Evangelhos, um só Evangelho, que nos propõe
a Igreja, qual é? Posto que largo em nomes e gerações, é tão breve e resumido,
no que finalmente vem a dizer, que todo se encerra na cláusula que tomei por
tema: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. - Se o sermão
houvera de ser do nascimento de Cristo, que é a solenidade do oitavário
corrente, não podia haver outro texto, nem mais próprio do tempo, nem mais
acomodado ao mistério; mas, havendo de pregar, não sobre este, senão sobre
outros assuntos, e esses não livres, senão forçados, e sendo os mesmos assuntos
não menos que três, e todos três tão diversos, como os poderei eu fundar sobre
a estreiteza de umas palavras, que só nos dizem que Jesus nasceu de Maria: Maria,
de qua natus est Jesus? - Suposto, pois, que nem é lícito ao
pregador - se quer ser pregador- apartar-se do tema, nem o tema nos oferece
outra coisa mais que um Filho nascido de Maria, multiplicando este nascimento
em três nascimentos, este nascido em três nascidos, e este Filho em três
filhos, todos três nascidos de Maria Santíssima, esta mesma será a matéria do
sermão, dividido também em três partes. Na primeira, veremos com novo
nascimento nascido de Maria a Jesus; na segunda, com outro novo nascimento,
nascido de Maria a S. João; e na terceira, também com novo nascimento, nascidos
de Maria aos pretos seus devotos. Dêem-me eles principalmente a atenção que
devem, e destes três nascimentos nascerão outros tantos motivos com que
reconheçam a obrigação que têm de amar, venerar e servir a Virgem, Senhora
nossa, como Mãe de Jesus, como Mãe de S. João, e como Mãe sua.
III
Primeiramente, digo que temos hoje nascido de Maria a
Cristo, Senhor nosso, não como nasceu há três dias, mas com outro nascimento
novo. E que novo nascimento é este? É o nascimento com que nasceu da mesma Mãe
daqui a trinta e três anos, não em Belém, senão em Jerusalém. Isto é o que diz
o nosso texto, e provo: Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus:
Maria da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo. - Cristo quer dizer ungido,
Jesus quer dizer salvador. E quando foi Cristo salvador, e quando foi ungido?
Foi ungido na Encarnação e foi salvador na cruz. Foi ungido na Encarnação
quando, unindo Deus a si a humanidade de Cristo, a exaltou sobre todas as
criaturas, como diz Davi: Unxit te Deus, Deus tuus, oleo laetitiae,
prae consortibus tuis.
- E foi salvador na cruz, quando por meio da morte, e pelo preço de seu sangue,
salvou o gênero humano, como diz S. Paulo. Factus obediens usque ad mortem,
mortem autem crucis. Propter quod et Deus exaltavit illum, et donavit illi
nomen, quod est super omne nomen, ut in nomine Jesu omne genu flectatur. - Logo, quando
Cristo, Senhor nosso, nasceu em Belém, propriamente nasceu Cristo, mas não
nasceu Jesus, nem salvador: nasceu Cristo, porque já estava ungido pela união
hipostática com que a Pessoa do Verbo se uniu à humanidade; e não nasceu Jesus
nem salvador, porque ainda não tinha remido o mundo, nem o havia de remir e
salvar, senão em Jerusalém, daí a trinta e três anos.
Fala o profeta Isaías do parto virginal de Maria
Santíssima - como notaram S. Gregório Niceno e S. João Damasceno - e diz assim:
Antequam parturiret, peperit; antequam veniret partus ejus, peperit masculum. - Na primeira
cláusula diz que pariu a Senhora antes das dores do parto, que isso quer dizer:
Antequam parturiret - e na segunda diz que pariu antes do parto: Antequam
veniret partus ejus, peperit. - Não é necessário que nós dificultemos o
passo, porque o mesmo profeta confessa que disse uma coisa inaudita, e que
nunca se viu semelhante: Quis audivit unquam tale? Et quis vidit huic simile? - Que a
bendita entre todas as mulheres saísse à luz com o fruto bendito de seu ventre
sem padecer dores, privilégio era devido à pureza virginal, com que o concebeu,
e assim o confessa a nossa fé. Mas que parisse antes do parto: Antequam
veniret partus ejus -como se pode entender, senão supondo na mesma Senhora
dois partos do mesmo Filho, e supondo também que o primeiro parto foi sem
dores, e o segundo com dores? Assim foi, e assim o diz: quem? O nosso português
Santo Antônio, que é bem preceda agora a todos os outros doutores da Igreja,
pois falamos na sua: Beatae Marie duplex fuit partus, unus in carne, alius
in spiritu. Partus carnis fuit virgineus, et omni gaudio plenus, quia
peperit sine dolore gaudium angelorum. Secundus partus fuit dolorosus, et omni
amaritudine plenus, in Filii ejus passione, cujus animam pertransivit gladius: Sabeis por que
faz menção Isaías de dois partos da Virgem Beatíssima, e no primeiro nega as
dores, e no segundo não? A razão é - diz o Mestre Seráfico - porque este foi o
modo e a diferença com que a Senhora pariu ao seu bendito Filho, não uma, senão
duas vezes: a primeira vez sem dores, antes com júbilos, e quando entre
cantares de anjos o pariu no presépio; a segunda vez com dores, e cheia de
amarguras, quando, trespassada da espada de Simeão, o tornou a parir ao pé da
cruz. -Uma vez nascido Cristo em Belém, e outra vez nascido em Jerusalém; uma
vez nascido no princípio da vida, e outra vez nascido no fim dela; uma vez
trinta e três anos antes, e outra vez trinta e três anos depois, que por isso o
profeta, falando deste segundo parto, disse advertidamente: Antequam veniret
partus ejus - porque um parto depois do outro havia de tardar em vir tantos
anos.
E, posto que bastava por prova da minha proposta a
autoridade de tão grande intérprete das Escrituras, como Santo Antônio, a quem
por essa causa chamaram os oráculos de Roma Arca do Testamento, diga-nos o
mesmo o evangelista S. João, com texto mais claro que o de Isaías. No capítulo
doze do seu Apocalipse viu S. João aquela mulher tão prodigiosa como sabida, a
quem vestia o Sol, calçava a lua, e coroavam as estrelas; e diz que, chegada a
hora do parto, foram não só grandes, mas terríveis as dores com que pariu um filho
varão, o qual havia de ser senhor do mundo e governador de todas as gentes: Cruciabatur
ut pariat, et peperit filium masculum, qui recturus erat omnes gentes. - Esta mulher
prodigiosa, em cujo ornato se empenharam e despenderam todas as luzes do céu,
era a Virgem Santíssima; o Filho, senhor do mundo, e que havia de governar
todas as gentes, era Cristo, governador do universo e senhor dele. Mas, se o
parto da mesma Virgem foi isento de toda a dor e moléstia, que dores e que
tormentos são estes com que agora S. João a viu parir, não outro, senão o mesmo
filho? A palavra cruciabatur, que é derivada da cruz, basta por comento
de todo o texto. O Filho era o mesmo, e a Mãe a mesma, mas o parto da Mãe e o
nascimento do Filho não era o mesmo, senão muito diverso. Era o segundo
nascimento do Filho, em que, por modo superior a toda a natureza, havia de
nascer morrendo. E porque este segundo nascimento foi entre dores, tormentos e
afrontas, e com os braços pregados nos de uma cruz, por isso a mesma cruz do
nascimento do Filho foi também a cruz do parto da Mãe: Et cruciabatur ut
pariat.
Nasceu o Filho crucificado na sua
cruz, e pariu-o a Mãe crucificada na cruz do Filho, e se perguntarmos - que é o
que só nos resta – por que o Filho no segundo nascimento nasceu assim, e a Mãe
o pariu do mesmo modo? A razão, como dizia ao princípio, não foi outra senão
porque Cristo no primeiro parto nasceu propriamente Cristo, e neste segundo
nasceu propriamente Jesus. Esta foi a diferença com que o anjo anteontem
anunciou aos pastores o nascimento do mesmo Cristo: Quia natus est vobis
hodie Salvator, qui est Christus (Lc. 2,11): Alegrai-vos, porque hoje
nasceu o Salvador, que é Cristo. - Notai que não disse: Qui est Salvator -
assim como disse: Qui est Christus - porque o menino nascido já era
Cristo, mas ainda não era salvador. Havia de ser salvador, e, para ser salvador
nascia; mas ainda o não era. Cristo sim: Qui est Christus - porque já
estava ungido na dignidade de Filho de Deus; mas na de Jesus e de salvador
ainda não, porque essa não a havia de receber no presépio, senão na cruz: Factus
obediens usque ad mortem crucis, ut in nomine Jesu omne genu flectatur. -E aqui é que
propriamente nasceu Jesus, e não de outra Mãe, senão da mesma Virgem Maria: Maria,
de qua natus est Jesus.
IV
O segundo filho da mesma Virgem Maria, e nascido também no
Calvário, e com novo e segundo nascimento, foi São João. E que seria se
disséssemos que também deste nascimento se verifica o nosso texto? O em que
agora reparo nas palavras de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus,
é que este vocatur parece impróprio, e este Christus supérfluo. O nome
próprio do Filho de Deus, e Filho de Maria, é Jesus; este nome lhe foi posto no
dia da circuncisão, e assim o tinha revelado o anjo antes de ser concebido: Vocatum
est nomen ejus Jesus, quod vocatum est ab angelo prius quam in utero
conciperetur.
Logo o vocatur, aplicado, não ao nome Jesus, senão ao sobrenome Christus,
parece impróprio; e o mesmo sobrenome Christus também parece supérfluo,
porque só seria necessário para distinguir um Jesus de outro Jesus. Porventura
há outro Jesus, e nascido de Maria, que se não chame Cristo? Digo que sim. Há
um Jesus Filho de Maria que se chama Cristo, e há outro Jesus, também Filho de
Maria, que se chama João. E por isso o evangelista, para distinguir um Jesus de
outro Jesus, e um filho de Maria de outro filho de Maria, não supérflua, senão
necessariamente acrescentou ao nome o sobrenome, e não só disse: Maria, da qual
nasceu Jesus - senão: Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.
Quando o mesmo Cristo estava na cruz, disse à sua
Santíssima Mãe: Ecce filius tuus(15); estas palavras
eram equívocas, e mais naturalmente se podiam entender do mesmo Cristo, que as
dizia, do que de outro por quem as dissesse. E como tirou o Senhor esta
equivocação? Tirou-a com os olhos e com a inclinação da cabeça, que só tinha
livre, apontando para João. Bem. Mas, porque não disse, este é outro filho que
vos deixo em meu lugar, senão este é o vosso filho: Ecce filius tuus? -
Não há dúvida, responde Orígenes, que, falando o Senhor por estes termos, quis
significar declaradamente que ele e João não se distinguiam, e que João não era
outro filho da Senhora, senão o mesmo Jesus, que ela gerara e dela nascera.
Notai as palavras, que não podem ser mais próprias, e a razão, que não pode ser
mais subida: Nam si nullus est Mariae filius praeterquam Jesus, dixitque
Jesus: Ecce filius tuus; perinde est, ac sic dixisset: Hic est Jesus quem
genuisti.
-Pois se Jesus e João eram dois, e tão infinitamente diversos, Jesus o Senhor,
e João o servo; Jesus o Mestre, e João o discípulo; Jesus o Criador; e João a
criatura; Jesus o filho de Deus, e João o filho de Zebedeu, como era ou como
podia ser João, não outro filho, senão o mesmo filho, nem outro Jesus, senão o
mesmo Jesus que a Senhora gerara: Hic est Jesus quem genuisti? - S.
Pedro Damião reconhece aqui um mistério semelhante ao do Sacramento; mas eu,
sem recorrer a milagre, entendo que tudo isto se decifra e verifica com ser
João o amado: Discipulus quem diligebat. -Era o amado?
Logo era outro, e era o mesmo Jesus. Enquanto Jesus e João eram o mesmo por
amor, eram um só Jesus; e enquanto João por realidade era outro, eram dois
Jesus.
Os filósofos antigos, definindo a verdadeira amizade, qual
naquele tempo era, ou qual devia ser, disseram: Amicus est alter ego: O
amigo é outro eu. - Logo, enquanto o amigo é eu ego - eu e ele somos um; e
enquanto ele é outro - alter - ele e eu somos dois, mas ambos os mesmos,
e isto é o que obrou sem milagre, por transformação recíproca, o amor de Jesus
em João. A mesma antigüidade nos dará o exemplo. Depois da famosa vitória de
Alexandre Magno contra el-rei Dario, foi trazida a rainha-mãe diante do mesmo
Alexandre, a cujo lado assistia seu grande privado Efestião. E como a rainha
fizesse a reverência a Efestião, cuidando que ele era o Magno, por ser mais
avultado de estatura, e, avisada do seu erro, o quisesse desculpar, acudiu
Alexandre, como refere Cúrcio, com estas palavras: Non errasti mater; namque
et hic Alexander est: Não errastes, senhora, porque este também é
Alexandre. - Assim o disse o grande monarca, mais como discípulo de Aristóteles
que como filho de Filipe. E se o amor - que eu aqui tenho por político e falso
- ou fazia ou fingia que Alexandre e Efestião fossem dois Alexandres: Namque
et hic Alexander est - o amor verdadeiro sobrenatural, da parte de Cristo
divino, e da parte de João mais que humano, por que não fariam que Jesus e João
fossem dois Jesus? Não há dúvida que naquele passo estavam dois Jesus no
Calvário, um na cruz, outro ao pé dela.
Quando Eliseu disse a Elias: Fiat in me duplex spiritus
tuus
-não me passa persuadir que lhe pedisse dobrado espírito do que era o seu,
porque seria demasiada presunção de discípulo para mestre; o que quis dizer,
foi que o espírito de Elias se dobrasse e multiplicasse em ambos, e que Elias o
levasse, pois se ia, e o deixasse a Eliseu, pois ficava. E neste caso, se o
espírito de Elias fosse com Elias e ficasse com Eliseu, Elias porventura seria
um só Elias? De nenhum modo - diz S. João Crisóstomo. - Dobrou-se o espírito de
Elias, e multiplicou-se em Eliseu, como ele tinha pedido; mas então não houve
um só Elias, senão dois Elias: Erat duplex Elias ille, et sursum Elias, et
deorsum Elias.
- Arrebatou o carro de fogo a Elias, e no mesmo tempo e no mesmo lugar, diz
Crisóstomo, se viram então dois Elias, um em cima, outro embaixo; um no ar,
outra na terra; um no carro, outro ao pé dele: Et sursum Elias, et deorsum
Elias. - O mesmo se viu no nosso caso. O carro triunfal, em que o Redentor
do mundo triunfou da morte, do pecado e do inferno, foi a cruz; levantado nela
o Senhor, partia-se o Mestre, e ficava o discípulo: mas como? Como Elias e
Eliseu. E assim como Elias e Eliseu eram dois Elias; duplex Elias -
assim Jesus e João eram dois Jesus; e assim como lá um Elias se via em cima
outro embaixo: Et sursum Elias et deorsum Elias - assim cá também um
Jesus estava em cima, outro Jesus embaixo, um no ar outro na terra, um na cruz
outro ao pé da cruz. E para que ninguém duvidasse que o milagre com que Jesus
se tinha dobrado e multiplicado em João era por virtude e transformação do
amor, o mesmo João advertidamente não se chamou aqui João, senão o amado: Cum
vidisset Jesus matrem, et discipulum stantem, quem diligebat. - Sendo, pois,
João, por transformação do amor, outro Jesus, e Jesus e João dois Jesus, com
razão acrescentou o evangelista ao nome de Jesus o sobrenome de Cristo: Jesus
qui vocatur Christus - para distinguir um Jesus de outro Jesus.
Nem basta por distinção o declarar
que era Filho de Maria, e de Maria nascera: Maria, de qua natus est -
porque no mesmo lugar do Calvário, onde Cristo, enquanto Jesus, nasceu segunda
vez de sua Santíssima Mãe - como dissemos - também S. João, com segundo
nascimento, nasceu da mesma Senhora, sendo João desde aquele ponto filho de
Maria: Ecce filius tuus - e Maria, Mãe de João: Ecce Mater tua -
e por isso, no mesmo tempo e no mesmo lugar, Mãe de dois Jesus: um Jesus que se
chama João, e outro Jesus que se chama Cristo: De qua natus est Jesus, qui
vocatur Christus.
V
O terceiro nascimento, de que também se verificam as
mesmas palavras, é o dos pretos, devotos da mesma Senhora, os quais também são
seus filhos, e também nascidos entre as dores da cruz. O profeta-rei, falando
da Virgem Maria debaixo da metáfora de Jerusalém - a que muitas vezes é
comparada, porque ambas foram morada de Deus - diz assim: Homo et homo natus
est in ea, et ipse fundavit eam Altissimus (Sl.86,5): Nasceu nela o homem e
mais o homem: e quem a fundou, foi esse mesmo Altíssimo. - Estas segundas
palavras declaram o sentido das primeiras, e de umas e outras se se convence
que o mesmo Deus que criou a Maria é o homem que nasceu de Maria. Enquanto
homem nasceu dela: Homo natus est in ea - e esse mesmo, enquanto Deus, a
criou a ela: Et ipse fundavit eam Altíssimus. - Assim o diz e prova com
evidência Santo Agostinho. Mas o profeta ainda diz mais, porque não só diz que
nasceu da Senhora esse homem, que enquanto Deus a criou, senão que nasceu dela
o homem e mais o homem: Homo et homo natus est in ea. - Se um destes
homens nascidos de Maria é Deus, o outro homem, também nascido de Maria, quem
é? É todo o homem que tem a fé e conhecimento de Cristo, de qualquer qualidade,
de qualquer nação e de qualquer cor que seja, ainda que a cor seja tão
diferente da dos outros homens, como é a dos pretos. Assim o diz o mesmo texto,
tão claramente que nomeia os mesmos pretos por sua própria nação e por seu
próprio nome: Memor ero Rahab et Babylonis, scientium me; ecce alienigenae,
et Tyrus, et populus Aethiopum, hi fuerunt illic. - Nasceram da
Mãe do Altíssimo, não só os da sua nação, e naturais de Jerusalém, a que é
comparada, senão também os estranhos e os gentios -alienigenae. - E que gentios
são estes? Rahab: os cananeus, que eram brancos; Tyrus: os
tírios, que eram mais brancos ainda, e sobre todos, e em maior número que
todos: populus Aethyopum: o povo dos etíopes, que são os pretos. De
maneira que vós, os pretos, que tão humilde figura fazeis no mundo e na
estimação dos homens, por vosso próprio nome e por vossa própria nação estais
escritos e matriculados nos livros de Deus e nas Sagradas Escrituras, e não com
menos titulo nem com menos foro que de filhos da Mãe do mesmo Deus: Et
populus Aethiopum, hi fuerunt illic.
E posto que o texto é tão claro e literal que não admite
dúvida, ouçamos o comento de Santo Tomás, Arcebispo de Valença: Aethyopes non
abjicit Virgo decora, sed amplectitur ut parvulos, diligit ut filius. Sciant
ergo ipsam matrem etenim quia Altissimi mater est, Aethyopis matrem nominari
non dedignatur. - O profeta pôs no último lugar os etíopes e os pretos,
porque este é o lugar que lhes dá o mundo, e a baixa estimação com que são
tratados dos outros homens, filhos de Adão como eles. Porém, a Virgem Senhora,
sendo Mãe do Altíssimo, não os despreza, nem se despreza de os ter por filhos;
antes, porque é mãe do Altíssimo, por isso mesmo se preza de ser também sua
Mãe: Etenim quia Altissimi mater est, Aethyopismatrem nominari non
dedignatur. - Saibam, pois, os pretos, e não duvidem que a mesma Mãe de
Deus é Mãe sua: Sciantergo ipsam matrem - e saibam que com ser uma
Senhora tão soberana, é Mãe tão amorosa, que, assim pequenos como são, os ama e
tem por filhos: Amplectitur ut parvulos, diligit ut filios. Até aqui
Santo Tomás.
E se me perguntarem os curiosos quando alcançaram os
pretos esta dignidade de filhos da Mãe de Deus, respondo que no monte Calvário
e ao pé da cruz, no mesmo dia e no mesmo lugar em que o mesmo Cristo, enquanto
Jesus e enquanto Salvador, nasceu com segundo nascimento da Virgem Maria: Maria,
de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. - Este parece o ponto mais
dificultoso desta terceira proposta. Mas assim o diz com propriedade e
circunstância admirável o mesmo texto de Davi. Porque os etíopes, que no corpo
do salmo se chamam nomeadamente filhos da Senhora, no título do mesmo salmo se
chamam filhos de Coré: ln finem filius Core pro arcanis. - Esta palavra
pro arcanis nota e manda advertir que se encerra aqui um grande mistério. E que
mistério tem chamarem-se estes filhos da Virgem Maria filhas também de Coré?
Santo Agostinho, na exposição do mesmo salmo: Magni sacramenti est, ut
dicantur filii Core, quia Core interpretatur Calvaria. Ergo filii
passionis illius, filii redempti sanguine illius, filii crucis illius: Coré, na
língua hebréia, quer dizer Calvário, e chamam-se filhos do Calvário, e filhos
da paixão de Cristo, e filhos da sua cruz os mesmos que neste texto se chamam
nomeadamente filhos da Virgem Maria, porque, quando no Calvário e ao pé da cruz
nasceu da Virgem Maria, com segundo nascimento, seu benditíssimo Filho,
enquanto Jesus e Salvador do mundo, então nasceram também, com segundo
nascimento, da mesma Senhora todos os outros filhos das outras nações que o
profeta nomeia, e entre eles, com tão especial menção, os etíopes, que são os
pretos:Et populus Aethyopum, hi fuerunt illic. -De sorte que, assim como
no Calvário e ao pé da cruz nasceu de Maria com segundo nascimento Cristo, e
assim como no Calvário e ao pé da cruz nasceu de Maria com segundo nascimento
S. João, assim ao pé da cruz nasceram também com segundo nascimento da mesma
Virgem Maria os pretos, verificando-se de todos os três nascimentos, por
diferente modo, o texto no nosso tema: Maria, de qua natus est Jesus, qui
vocatur Christus.
Estou vendo que cuidam alguns que são isto encarecimentos
e lisonjas daquelas com que os pregadores costumam louvar os devotos nos dias
da sua festa. Mas é tanto pelo contrário, que tudo o que tenho dito é verdade
certa e infalível, e não com menor certeza que de fé católica. Os etíopes, de que
fala o texto de Davi, não são todos os pretos universalmente, porque muitos
deles são gentios nas suas terras; mas fala somente daqueles de que eu também
falo, que são os que por mercê de Deus e de sua Santíssima Mãe, por meio da fé
e conhecimento de Cristo, e por virtude do batismo são cristãos. Assim o notou
o mesmo profeta no mesmo texto: Memor ero Rahab et Babylonis scientium me,
et populus Aethyopum, hi fuerunt illic (SI. 86, 4). - Naquele scientium
me está a diferença de uns a outros. E por quê, ou como? Porque todos os
que têm a fé e conhecimento de Cristo, e são cristãos, são membros de Cristo, e
os que são membros de Cristo não podem deixar de ser filhos da mesma Mãe, de
que nasceu Cristo: De qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.
Que sejam verdadeiramente membros de Cristo, é proposição
expressa de S. Paulo, não menos que em três lugares. Deixo os dois, e só repito
o do capítulo doze aos Coríntios: Sicut enim corpus unum est, et membra
habet multa, omnia autem membra corporis, cum sint multa, unum tamen corpus
sunt: ita et Christus. Etenim in uno Spiritu omnes nos in unum corpus baptizati
sumus. -
Assim como o corpo tem muitos membros, e, sendo os membros muitos, o corpo é um
só, assim - diz S. Paulo - sendo Cristo um, e os cristãos muitos, de Cristo e
dos cristãos se compõe um só corpo, porque todos os cristãos, por virtude da fé
e do batismo, são membros de Cristo. - E por que não cuidassem, os que são
fiéis e senhores, que os pretos, por terem sido gentios e serem cativos, são de
inferior condição, acrescenta o mesmo S. Paulo, que isto tanto se entende dos
hebreus, que eram os fiéis, como dos gentios, e tanto dos cativos e dos
escravos, como dos livres e dos senhores: Etenim omnes in unum corpus
baptizati sumus, sive Judaei, sive gentiles, sive servi, sive liberi. - E como todos
os cristãos, posto que fossem gentios e sejam escravos, pela fé e batismo estão
incorporados em Cristo, e são membros de Cristo, por isso a Virgem Maria, Mãe
de Cristo, é também Mãe sua, porque não seria Mãe de todo Cristo se não fosse
Mãe de todos seus membros. Excelentemente Guilhelmo Abade: In uno Salvatore
omnium Jesu, plurimos Maria peperit ad salutem. Eo ipso quod mater est capitis,
multorum membrorum mater est. Mater Christi Mater est
membrorum Christi, quia caput et corpus unus est Christus.
Não se poderá dizer com melhores
palavras, nem mais próprias, mas eu quero que no-lo diga com as suas, e nos
feche todo este discurso da Escritura Sagrada. Quando Nicodemos de mestre da
lei se fez discípulo de Cristo, disse-lhe o Senhor três coisas notá-veis. A
primeira, que para ele, Nicodemos, e qualquer outro se salvar, era necessário
nascer de novo: Nisi quis renatus fueri denuo, non potest videre
regnum Dei.
- A segunda, que ninguém sobe ao céu, senão quem desceu do céu: Nemo
ascendit in caelum, nisi qui descendit de caelo: A terceira,
que para isto se conseguir, havia de morrer em uma cruz o mesmo Cristo: Oportet
exaltari Filium hominis.
- Se o texto se fizera para o nosso caso, não pudera vir mais medido com todas
suas circunstâncias. Quanto à primeira, replicou Nicodemus, dizendo: Quomodo
potest homo nasci,cum sit senex? Numquid potest in ventrem matris suae iterato
introire et renasci (Jo. 3,4)? Como é possível que um homem velho, como eu
sou, haja de nascer de novo? Porventura há de tornar a entrar no ventre de sua
mãe, para nascer outra vez? - Pareceu-lhe ao doutor que esta instância era
muito forte; mas o divino Mestre lhe ensinou que este segundo e novo nascimento
era por virtude do batismo, sem o qual ninguém se pode salvar: Nisi quis
renatus fuerit ex aqua, et Spiritu Sancto,non potest introire in regnum Dei. E quanto à
mãe, de que haviam de tornar a nascer os que assim fossem regenerados,
acrescentou o mesmo Senhor que essa mãe era a mesma Virgem Maria, Mãe sua. Isto
querem dizer as segundas palavras de Cristo, posto que o não pareça, nem até
agora se tenha reparado nelas. Quando o Senhor disse que ninguém sobe ao céu
senão quem desceu do céu juntamente declarou que este que desceu do céu era o
mesmo Cristo, filho da Virgem: Nemo ascendit in caelum, nisi qui descendit
de caelo, Filius hominis, qui est in caelo. -Pois, porque
Cristo desceu do céu, por isso todos os que sobem ao céu desceram também do
céu? Sim. Porque ninguém pode subir ao céu, senão incorporando-se com Cristo,
como todos nos incorporamos com ele, e nos fazemos membros do mesmo Cristo por
meio da Fé e do Batismo; donde se seguem duas coisas: a primeira, que assim
como ele desceu do céu, assim nós, por sermos membros seus, também descemos nele
e com ele: Nemo ascendit in caelo nisi qui descendit de caelo. - A
segunda, que assim como ele desceu do céu, fazendo-se Filho da Virgem Maria: Filius
hominis, qui est in caelo - assim nós também ficamos sendo filhos da mesma
Virgem, porque somos membros verdadeiros do verdadeiro Filho que dela nasceu;
e, finalmente, porque este segundo e novo nascimento não foi o de Belém, senão
o de Jerusalém, nem o do presépio, senão o do Calvário, por isso conclui o
Senhor que para este segundo nascimento se conseguir, era necessário que ele
morresse na cruz: Oportet exaltari Filium hominis. - Vejam agora os
pretos se por todos os títulos ou circunstâncias de etíopes, de batizados, de
nascidos com segundo nascimento, de nascidos no Calvário, e nascidas não de
outra Mãe, senão da mesma Mãe de Jesus, se verifica também deles, como membros
de Cristo, o nascimento com que o mesmo Cristo segunda vez nasceu dc Maria: Maria,
de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus.
VI
Parece-me que tenho provado os três nascimentos que
prometi. E, posto que todos três sejam mui conformes às circunstâncias do
tempo, o de Cristo, porque continuamos a oitava do seu nascimento, o de S.
João, porque estamos no seu próprio dia, e o dos pretos, porque celebramos com
eles a devoção da Virgem Santíssima, Mãe de Cristo, Mãe de S. João, e Mãe sua,
sobre estas três grandes propriedades temos ainda outras três muito mais
próprias: e quais são? Que unidos estes três nascimentos em um mesmo intento,
todos e cada um deles se ordenam a declarar e persuadir a devoção do Rosário, e
do Rosário particularmente dos pretos, e dos pretos em particular que trabalham
neste e nos outros engenhos. Não são estas as circunstâncias mais individuais
do lugar, das pessoas, e da festa e devoção que celebramos? Pois, todas elas
nascem daqueles três nascimentos. O novo nascimento dos mesmos pretos, como
filhos da Mãe de Deus, lhes mostra a obrigação que têm de servir, venerar e
invocar a mesma Senhora com o seu Rosário. O novo nascimento de Cristo os
persuade a que, sem embargo do contínuo e grande trabalho em que estão
ocupados, nem por isso se esqueçam da soberana Mãe sua, e de lhe rezar o
Rosário, ao menos parte, quando não possam todo. E, finalmente, o novo
nascimento de S. João lhes ensina quais são, entre os mistérios do Rosário, os
que mais pertencem ao seu estado, e com que devem aliviar, santificar e
oferecer à Senhora o seu mesmo trabalho. Este é o fim de quanto tenho dito e me
resta dizer, e este também o fruto de que mais se serve e agrada a Virgem do
Rosário, e com que haverá por bem festejado o seu dia. E porque agora falo mais
particularmente com os pretos, agora lhes peço mais particular atenção.
Começando, pois, pelas obrigações que nascem do vosso novo
e tão alto nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas
graças a Deus por vos ter dado conhecimento dc si, e por vos ter tirado de
vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazidos
a esta, onde, instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos salveis. Fez Deus tanto
caso de vós, e disto mesmo que vos digo, que mil anos antes de vir ao mundo, o
mandou escrever nos seus livros, que são as Escrituras Sagradas. - Virá tempo,
diz Davi, em que os etíopes - que sois vós - deixada a gentilidade e idolatria,
se hão de ajoelhar diante do verdadeiro Deus: Coram illo procident Aethyopes - e que farão
assim ajoelhados? Não baterão as palmas como costumam, mas, fazendo oração,
levantarão as mãos ao mesmo Deus: Aethyopia praeveniet manus ejus Deo. - E quando se
cumpriram estas duas profecias, uma do Salmo setenta e um, e outra do salmo
sessenta e sete? Cumpriram-se principalmente depois que os portugue-ses
conquistaram a Etiópia ocidental, e estão se cumprindo hoje, mais e melhor que
em nenhuma outra parte do mundo nesta da América, aonde trazidos os mesmos
etíopes em tão inumerável número, todos com os joelhos em terra, e com as mãos
levantadas ao céu, crêem, confessam e adoram no Rosário da Senhora todos os
mistérios da Encarnação, Morte e Ressurreição do Criador e Redentor do mundo,
como verdadeiro Filho de Deus e da Virgem Maria. Assim como Deus na lei da
natureza escolheu a Abraão, e na da escrita a Moisés, e na da graça a Saulo,
não pelas serviços que lhe tivessem feito, mas pelos que depois lhe haviam de
fazer, assim a Mãe de Deus, antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade e esta
vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes
nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos pais, vos
não perdêsseis; e cá, como filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais
universal milagre de quantos faz cada dia, e tem feito por seus devotos a
Senhora do Rosário.
Falando o texto sagrado dos filhos de Coré, que, como já
dissemos, são os filhos da Senhora nascidos no Calvário, diz que, perecendo seu
pai, eles não pereceram, e que isto foi um grande milagre: Factum est grande
miraculum, ut, Core pereunte, filiiillis non perirent. -Não perecerem
nem morrerem os filhos quando perecem e morrem os pais é coisa muito natural,
antes é lei ordinária da mesma natureza, porque, se com os pais morrerem
juntamente os filhos, acabar-se-ia o mundo. Como diz logo o texto sagrado que
não morrerem e perecerem os filhos de Coré, quando morreu e pereceu seu pai,
não só foi milagre, senão um grande milagre: Factum est grande miraculum?
- Ouvi o caso todo, e logo vereis em que consistiu o milagre e sua grandeza.
Caminhando os filhos de Israel pelo deserto em demanda da Terra de Promissão,
rebelaram-se contra Deus três cabeças de grandes famílias, Datã, Abiron e Coré,
e querendo a divina justiça castigar exemplarmente a atrocidade deste delito,
abriu-se subitamente a terra, tragou vivos aos três delinqüentes, e em um
momento todos três, com portento nunca visto, foram sepultados no inferno.
Houve porém neste caso uma diferença ou exceção muito notável, e foi que com
Datã e Abiron pereceram juntamente, e foram também tragados da terra e
sepultados no inferno seus filhos; mas os de Coré não, e este é o que a
Escritura chama grande milagre: Factum est grande miraculum, ut Core
pereunte, filii illius non perirent. - Abrir-se a terra não foi milagre?
Sim, foi. Serem traga-dos vivos os três delinqüentes, não foi outro milagre?
Também. Irem todos em corpo e alma ao inferno antes do dia do Juízo, não foi
terceiro milagre? Sim, e muito mais estupendo. E, contudo, o milagre que a
Escritura Sagrada pondera e chama grande milagre não foi nenhum destes, senão o
perecer Coré e não perecerem seus filhos, porque o maior milagre e a mais
extraordinária mercê, que Deus pode fazer aos filhos de pais rebeldes ao mesmo Deus,
é que quando os pais se condenam, e vão ao inferno, eles não pereçam, e se
salvem.
Oh! se a gente preta, tirada das brenhas da sua Etiópia, e
passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus e a sua Santíssima Mãe por
este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e
grande milagre? Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade,
e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé nem conhecimento de Deus, aonde vão
depois da morte? Todos, como credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão
ardendo e arderão por toda a eternidade. E que, perecendo todos eles, e sendo
sepultados no inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e
vades ao céu? Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina: Factum
est grande miraculum, ut Core pereunte filii illius non perirent. -
Os filhos de Datã e Abiron pereceram com seus pais, porque seguiram com eles a
mesma rebelião e cegueira; e outro tanto vos poderá suceder a vós. Pelo
contrário, os filhos de Coré, perecendo ele, salvaram-se, porque reconheceram,
veneraram e obedeceram a Deus; e esta é a singular felicidade do vosso estado,
verdadeiramente milagroso.
Só resta mostrar-vos que este grande milagre, como dizia,
é milagre do Rosário, e que esta eleição e diferença tão notável a deveis à
Virgem Santíssima, vossa Mãe, e por ser Mãe vossa. Isac, filho de Abraão - de
quem vossos antepassados tomaram por honra a divisa da circuncisão, que ainda
conservam, e do qual muitos de vós descendeis por via de Ismael, meio-irmão do
mesmo Isac - este Isac, digo, tinha dois filhos, um chamado Jacó, que levou a
bênção do céu, e outro chamado Esaú, que perdeu a mesma bênção. Tudo isto
sucedeu em um mesma dia, em que Esaú andava pelos matos armado de arco e
frechas, como andam vossos pais por essas brenhas da Etiópia; e, pelo
contrário, Jacó estava em casa de seu pai e de sua mãe, como vós hoje estais na
casa de Deus e da Virgem Maria. E por que levou a bênção Jacó, e a perdeu Esaú?
Porque concorreram para a felicidade de Jacó duas coisas, ou duas causas, que a
Esaú faltaram ambas. A primeira foi porque Rebeca - que era o nome da mãe - não
amava a Esaú, senão a Jacó, e fez grandes diligências, e empregou toda a sua
indústria em que ele levasse a bênção. A segunda, porque, estando duvidoso o
pai se lhe daria a bênção ou não, sentiu que os vestidos de Jacó lhe cheiravam
a rosas e flores, e tanto que sentiu este cheiro e esta fragrância logo lhe
deitou a bênção. Assim o nota expressamente o texto: Statimque ut sensit
vestimentorum illius fragrantiam, benedicens illi, ait: Ecce odor filii mei,
sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus. Det tibi Deus de rore caeli, etc. - Uma e outra
circunstância, assim da parte da mãe como do pai, foram admiráveis, e por isso
misteriosas. Da parte da mãe que, sendo Jacó e Esaú irmãos, amasse com tanta
diferença a Jacó; e da parte do pai que um acidente que parecia tão leve, como
o cheiro das flores, lhe tirasse toda a dúvida, e fosse o última motivo de lhe
dar a bênção. Mas assim havia de ser, para que o mistério se cumprisse com toda
a propriedade nas figuras e ações que o representavam. Isac significava a Deus,
Rebeca a Virgem Mãe, Jacó os seus filhos escolhidos, que sois vós, e Esaú os
reprovados, que são os que, sendo do vosso mesmo sangue e da vossa mesma cor,
não alcançaram a bênção que vós alcançastes. Para que entendais que toda esta
graça do céu a deveis referir a duas causas: a primeira, ao amor e piedade da Virgem
Santíssima, vossa Mãe; a segunda, à devoção do seu Rosário, que é o cheiro das
rosas e flores, que tanto enlevam e agradam a Deus.
Dos sacrifícios antigos, quando Deus os aceitava, diz a
Sagrada Escritura que lhe agradava muito o cheiro e suavidade deles: Odoratus
est Dominus odorem suavitatis - E a razão era
porque naqueles sacrifícios se representavam os mistérios da vida e da morte de
seu benditíssimo Filho. E como na devoção do Rosário se contém a memória e
consideração dos mesmos mistérios, este é o cheiro e fragrância que tanto nele
agrada, e tão aceito é a Deus. Em vós, antes de serdes cristãos, somente era
futuro este cheiro das flores do Rosário, que hoje é presente, como também eram
futuros naquele tempo os mistérios de Cristo; mas, assim como o merecimento
destes mistérios antes de serem, somente porque haviam de ser davam eficácia
àqueles sacrifícios, assim a vossa devoção do Rosário futura, e quando ainda
não era, só porque Deus e sua Mãe a anteviram, com a aceitação e agrado que
dela recebem, vos preferiram e antepuseram aos demais das vossas nações, e vos
tiveram por dignos da bênção que hoje gozais, tanto maior e melhor que a de
Jacó quanto vai da terra ao céu. Para que todos conheçais o motivo principal da
vossa felicidade, e a obrigação em que ela vos tem posto de não faltar a Deus e
a sua Santíssima Mãe com este quotidiano tributo da vossa devoção.
VII
Estou vendo, porém, que o vosso contínuo trabalho e exercício
pode parecer ou servir de escusa ao descuido dos menos devotos. Direis que
estais trabalhando de dia e de noite em um engenho, e que as tarefas
multiplicadas umas sobre outras - que talvez entram e se penetram com os dias
santos - vos não deixam tempo nem lugar para rezar o Rosário. Mas aqui entra o
novo nascimento de Cristo, segunda vez nascido no Calvário, para com seu divino
exemplo e imitação refutar a fraqueza desta vossa desculpa, e vos ensinar como
no meio do maior trabalho vos não haveis de esquecer da devoção de sua Mãe,
pois o é também vossa, oferecendo-lhe ao menos alguma parte, quando comodamente
não possa ser toda. Davi - aquele santo rei, que também teve netos na Etiópia,
filhos de seu filho Salomão e da rainha Sabá - entre os salmos que compôs,
foram três particulares, aos quais deu por título Pro torcularibus, que
em frase do Brasil quer dizer, para os engenhos. Este nome torcularia,
universalmente tomado, significa todos aqueles lugares e instrumentos em que se
espreme e tira o sumo dos frutos, como em Europa o vinho e o azeite, que lá se
chamam lagares; e porque estes, em que no Brasil se faz o mesmo às canas doces,
e se espreme, coze e endurece o sumo delas, têm maior e mais engenhosa fábrica
se chamaram vulgarmente engenhos. Se perguntarmos, pois, qual foi o fim e
intento de Davi em compor e intitular aqueles salmos nomeadamente para estas
oficinas, respondem os doutores hebreus, e com eles Paulo Burgense, que o
intento que teve o santo rei, e fez se praticasse em todo o povo de Israel, foi
que os trabalhadores das mesmas oficinas ajuntassem o trabalho com a oração, e
em lugar de outros cantares, com que se costumavam aliviar, cantassem hinos e
salmos; e, pois, recolhiam e aproveitavam os frutos da terra, não fossem eles
estéreis, e louvassem ao Criador que os dá. Notável exemplo por certo, e de
suma edificação, que entre os grandes negócios e governo da monarquia tivesse
um rei estes cuidados! E que confusão, pelo contrário, será para os que se
chamam senhores de engenho, se atentos somente aos interesses temporais, que se
adquirem com este desumano trabalho, dos trabalhadores seus escravos, e das
almas daqueles miseráveis corpos, tiverem tão pouco cuidado, que não tratem de
que louvem e sirvam a Deus, mas nem ainda de que o conheçam?
Tornando aos salmos compostos para os engenhos - que
depois veremos por que foram três - declara Davi no título do último quem sejam
os operários destas trabalhosas oficinas, e diz que são os filhos de Coré: Pro
torcularibus fillis Core (SI. 83, 1). - Segundo a propriedade da história,
já dissemos que os filhos de Coré são os pretos, filhos da Virgem Santíssima, e
devotos do seu Rosário. Segundo a significação do nome, porque Coré na língua
hebraica significa Calvário, diz Hugo Cardeal que são os imitadores da Cruz e
Paixão de Cristo crucificado: Filiis Core, id est, imitatoribus in loco
Calvariae crucifixi. - Não se pudera nem melhor nem mais altamente
descrever que coisa é ser escravo em um engenho do Brasil. Não há trabalho nem
gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e Paixão de Cristo que o vosso em
um destes engenhos. O fortunati nimium sua si bona norint!
Bem-aventurados vós, se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e, com a
conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança, aproveitar e
santificar o trabalho!
Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado:Imitatoribus
Christi crucifixi - porque padeceis em um modo muito semelhante o que o
mesmo Senhor padeceu na sua cruz e em toda a sua paixão. A sua cruz foi
composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não
faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para
o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A
Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar,
e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos;
Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós mal-tratados
em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de
tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência,
também terá merecimento de martírio. Só lhe faltava a cruz para a inteira e
perfeita semelhança o nome de engenho: mas este mesmo lhe deu Cristo, não com
outro, senão com o próprio vocábulo. Torcular se chama o vosso engenho,
ou a vossa cruz, e a de Cristo, por boca do mesmo Cristo, se chamou também
torcular: Torcular calcavi solus. - Em todas as invenções
e instrumentos de trabalho parece que não achou o Senhor outro que mais
parecido fosse com o seu que o vosso. A propriedade e energia desta comparação
é porque no instrumento da cruz, e na oficina de toda a Paixão, assim como nas
outras em que se espreme o sumo dos frutos, assim foi espremido todo o sangue
da humanidade sagrada: Eo quod sanguis ejus ibi fuit expressus, sicut sanguis
uvae in torculari - diz Lirano - et hoc in spineae coronae impositione,
in flagellatione, in pedum, et manuum confiscione, et in lateris apertione.
- E se então se queixava o Senhor de padecer só: Torcular calcovi solus
- e de não haver nenhum dos gentios que o acompanhasse em suas penas: Et de
gentibus non est vir mecum
- vede vós quanto estimará agora que os que ontem foram gentios, conformando-se
com a vontade de Deus na sua sorte, lhe façam por imitação tão boa companhia!
Mas, para que esta primeira parte da imitação dos
trabalhos da cruz o seja também nos afetos - que é a segunda e principal -
assim como no meio dos seus trabalhos e tormentos se não esqueceu o Senhor de
sua piedosíssima Mãe, encomendando-a ao discípulo amado, assim vos não haveis
vós de esquecer da mesma Senhora, encomendando-vos muito particularmente na sua
memória, e oferecendo-lhe a vossa. Depois de Cristo na cruz dar o reino do céu
ao Bom Ladrão, então falou com sua Mãe, e parece que este, e não aquele, havia
de ser o seu primeiro cuidado; mas seguiu o Senhor esta ordem, diz Santo
Ambrósio, para mostrar, segundo as mesmas leis da natureza, que mais fazia em
ter da própria Mãe esta lembrança que em dar a um estranho o reino: Pluris
putans quad pietatis officia dividebat, quam quod regnum caeleste donabat.
- Ao ladrão deu Cristo menos do que lhe pediu, e à Mãe deu muito mais do que
tinha dado ao ladrão, porque o ladrão pediu-lhe a memória, e deu-lhe o reino, e
à Mãe deu-lhe muito mais que o reino, porque lhe deu a memória. Esta memória
haveis de oferecer à Senhora em meio dos vossos trabalhos, à imitação de seu
Filho, e não duvideis ou cuideis que lhe seja menos aceita a vossa, antes, em
certo modo, mais. Porquê? Porque nas Ave-Marias do vosso Rosário a fazeis com
palavras de maior consolação do que as que lhe disse o mesmo Filho,
conformando-se com o estado presente. O Filho chamou-lhe mulher, e vós
chamar-lhe-eis a bendita entre todas as mulheres: o Filho não lhe deu nome de
mãe, e vós a invocareis cento e cinqüenta vezes com o nome de Santa Maria, Mãe
de Deus. Oh! quão adoçada ficará a dureza, e quão enobrecida a vileza dos
vossos trabalhos na harmonia destas vozes do céu, e quão preciosas serão diante
de Deus as vossas penas e aflições, se juntamente lhas oferecerdes em união das
que a Virgem Mãe sua padeceu ao pé da cruz!
E por que a continuação do vosso mesmo trabalho vos não
pareça bastante escusa para faltardes com vossas orações a esta pensão de cada
dia, adverti que se o vosso Rosário consta de três partes estando Cristo vivo
na Cruz somente três horas, nessas três horas orou três vezes. Pois, se Cristo
ora três vezes em três horas, sendo tão insofríveis os trabalhos da sua cruz,
vós, por grandes que sejam os vossos, por que não orareis três vezes em vinte e
quatro horas? Dir-me-eis que as orações que fez Cristo na cruz foram muito
breves. Mas nisso mesmo vos quis dar exemplo, e vos deixou uma grande
consolação. Para que quando, ou apertados do tempo, ou oprimidos do trabalho
não puderdes rezar o Rosário inteiro, não falteis ao menos em rezar parte,
consolando-vos com saber que nem por isso as vossas orações abreviadas serão
menos aceitas a Deus e à sua Mãe, assim como o foram as de Cristo a seu Eterno
Pai.
Agora acabareis de entender por que razão os salmos que
Davi compôs para os que trabalham nos engenhos foram somente três. Lede-os, ou
leiam-nos por vós os que os entendem, e acharão que só três se intitulam Pro
torcularibus. E por que três, nem mais nem menos? Porque em três partes,
nem mais nem menos, dividiu Davi o seu Saltério, e a Senhora o seu Rosário. O
que hoje chamamos Rosário, antes que as Ave-Marias se convertessem
milagrosamente em rosas, chamava-se o Saltério da Virgem, porque assim como o
Saltério era composto de cento e cinqüenta salmos, assim o Rosário se compõe de
cento e cinqüenta saudações angélicas. Que fez pois Davi, como rei pio e como
profeta? Como rei pio, que atendia ao bem presente do seu reino, vendo que os
trabalhadores dos lagares não podiam rezar o Saltério inteiro, e tão comprido
como é, recopilou e abreviou o mesmo Saltério, e reduziu as três partes, de que
é composto, aos três salmos que intitulou Pro torcularibus. E como profeta que
via os tempos futuros, e o Rosário que havia de compor a Mãe do que se havia de
chamar Filho de Davi, à imitação do seu Saltério, introduziu no mesmo Saltério,
já abreviado e reduzido a três salmos, os três mistérios gozosos, dolorosos e
gloriosos em que está repartido o Rosário. Assim foi, e assim se vê claramente
nos mesmos três salmos. Porque o primeiro - que é o salmo oito - tendo por
expositor a São Paulo, contém os mistérios da Encarnação e infância do
Salvador: Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem. - O segundo -
que é o salmo oitenta - contém os mistérios da Cruz e da Redenção,
representados na do Egito: Ego sum Dominus Deus tuus, qui eduxi te de terra
Aegypti.
E o terceiro -que é o salmo oitenta e três - contém os mistérios da Glória e da
Ascensão: Beatus vir cujus est auxilium abs te, ascensiones in corde suo
disposuit in valle lachrymarum.
Assim, pois, como os trabalhadores
hebreus - que eram os fiéis daquele tempo - no exercício dos seus lagares
meditavam e cantavam o Saltério de Davi recopilado naqueles três salmos, porque
não podiam todo, ao mesmo modo vós, quando não possais rezar todo o Rosário da
Senhora, ao menos com parte das três partes em que ele se divide haveis de
aliviar e santificar o peso do vosso trabalho na memória e louvores dos seus
mistérios. E este foi finalmente o exemplo e exemplar que vos deixou Cristo nas
três breves orações da sua Cruz. Porque, se bem advertirdes, em todas três,
pela mesma ordem do Rosário, se contêm os mistérios gozosos, dolorosos e
gloriosos. Os gloriosos, na terceira, em que encomendou sua alma nas mãos do
Padre, partindo-se deste mundo para a glória: Pater, in manus tuas commendo
spiritum meum.
- Os dolorosos, na segunda, em que amorosamente queixoso publicou a altas vozes
o excesso das suas dores: Deus meus, Deus meus, ut quiddereliquisti me? E os gozosos,
rogando pelos mesmos que o estavam pregando na Cruz, e alegando que não sabiam
o que faziam: Non enim sciunt quid faciunt - porque eles o
crucificavam para o atormentarem, e ele se gozava muito de que o crucificassem,
como declarou São Paulo: Proposito sibi gaudio, sustinuit crucem.
VIII
Resta o último e excelente documento de São João, também
nova e segunda vez nascido ao pé da cruz: e qual é este documento? Que entre
todos os mistérios do Rosário haveis de ser mais particularmente devotos dos
que são mais próprios do vosso estado, da vossa vida e da vossa fortuna, que
são os mistérios dolorosos. A todos os mistérios dolorosos - e não assim aos
outros - se achou presente São João. Assistiu ao do Horto com os dois
discípulos; assistiu ao dos açoites com a Virgem Santíssima no Pretório de
Pilatos; assistiu do mesmo modo e no mesmo lugar à coroação de espinhos; seguiu
ao Senhor com a Cruz às costas até ao Monte Calvário; e no mesmo Calvário se
não apartou do seu lado até expirar e ser levado à sepultura. Estes foram os
mistérios próprios do Discípulo amado, que, como a dor se mede pelo amor, a ele
competiam mais os dolorosos. Estes foram os seus, e estes devem ser os vossos,
e não só por devoção ou eleição, nem só por condição e semelhança da vossa
cruz, mas por direito hereditário, desde o primeiro etíope ou preto que
conheceu a Cristo e se batizou. É caso muito digno de que o saibais.
Apareceu um anjo a São Felipe diácono, e disse-lhe que se
fosse pôr na estrada de Gaza. Posto na estrada, tornou-lhe a aparecer, e
disse-lhe que se chegasse a uma carroça que por ali passava. Chegou, e viu que
ia na carroça um homem preto - que era criado da rainha de Etiópia - e ouviu
que ia lendo pelo profeta Isaías. O lugar em que estava era aquele famoso texto
do capítulo cinqüenta e três, em que o profeta descreve mais claramente que
nenhum outro a Morte, Paixão e Paciência de Cristo: Tanquam ovis ad
occisionem ductus est: et sicut agnus coram tondente se, sine voce, sic non
aperuit os suum, etc.
- Perguntou-lhe o diácono se entendia o que estava lendo, e como respondesse
que não, e lhe pedisse que lho declarasse, foi tal a declaração que, chegando
depois ambos a um rio, o etíope pediu ao santo que o batizasse. E este foi o
primeiro gentio depois de Cornélio Romano, e o primeiro preto cristão que houve
no mundo. Tudo nesta história, que é dos Atos dos Apóstolos, referida por São
Lucas, são mistérios. Mistério foi o primeiro aviso do anjo ao santo diácono, e
mistério o segundo; mistério que um gentio fosse lendo pela Sagrada Escritura,
e mistério que caminhando a fosse lendo; mistério que o profeta que lia fosse
Isaías, e mistério sobre todos misterioso que o lugar fosse da Paixão e
Paciência de Cristo, porque, para dar ocasião ao diácono de pregar a fé a um
gentio, bastava que fosse qualquer outro. Pois, porque ordenou Deus que fosse
sinaladamente aquele lugar, em que se descrevia a sua paixão e os tormentos com
que havia de ser maltratado, e a paciência, sujeição e silêncio com que os
havia de suportar? Sem dúvida porque neste primeiro etíope tão antecipadamente
convertido se representavam todos os homens da sua cor e da sua nação que
depois se converteram. Assim o dizem São Jerônimo e Santo Agostinho, e aprovam
com texto de Davi: Aethiopia praeveniet manus ejus Deo. E como a
natureza gerou os pretos da mesma cor da sua fortuna: Infelix genus hominum,
et ad servitutem natum
- quis Deus que nascessem à fé debaixo do signo da sua Paixão e que ela, assim
como lhes havia de ser o exemplo para a paciência, lhes fosse também o alívio
para o trabalho. Enfim, que de todos os mistérios da Vida, Morte e Ressurreição
de Cristo, os que pertencem por condição aos pretos, e como por herança, são os
dolorosos.
Destes devem ser mais devotos, e nestes se devem mais
exercitar, acompanhando a Cristo neles, como fez São João na sua Cruz. Mas,
assim como entre todos os mistérios do Rosário estes são os que mais propriamente
pertencem aos pretos, assim entre todos os pretos os que mais particularmente
os devem imitar e meditar são os que servem e trabalham nos engenhos, pela
semelhança e rigor do mesmo trabalho. Encarecendo o mesmo Redentor o muito que
padeceu em sua sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as suas
dores às penas do inferno: Dolores inferni circumdederunt me. - E que coisa
há na confusão deste mundo mais semelhante ao inferno que qualquer destes
vossos engenhos, e tanto mais quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem
recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de
açúcar doce inferno. E, verdadeiramente, quem vir na escuridade da noite
aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que estão
saindo a borbotões de cada uma, pelas duas bocas ou ventas por onde respiram o
incêndio; os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos,
que soministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o
revolvem e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes, com os cachões sempre
batidos e rebatidos, já vomitando escumas, já exalando nuvens de vapores mais
de calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído
das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando
vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas nem de
descanso; quem vir, enfim, toda a máquina e aparato confuso e estrondoso
daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios,
que é uma semelhança de inferno. Mas, se entre todo esse ruído, as vozes que se
ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo
esse inferno se converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e os
homens, posto que pretos, em anjos.
Grande texto de Davi. Estava vendo Davi essas mesmas
fornalhas do inferno e essas mesmas caldeiras ferventes, e, profetizando
literalmente dos que viu atados a elas, escreveu aquelas dificultosas palavras:
Si dormiatis inter medios cleros, pennae columbae deargentatae, et
posteriora dorsi ejus in pallore auri. Cleros quer
dizer lebetes, ou, como verte com maior propriedade Vatablo: Si dormiatis
inter medias caldarias, vasaque plena fulligine. - Diz, pois, o profeta: -
Se passardes as noites entre as caldeiras, e entre esses grandes vasos
fuliginosos, e tisnados com e fumo e labaredas das fornalhas, que haveis de
fazer, ou que vos há de suceder? - Agora entra o dificultoso das palavras: Pennae
columbaedeargentatae, et posteriora dorsi ejus in pallore auri. -Penas e
asas de pomba, prateadas por uma parte e douradas por outra. - E que tem que
ver a pomba com o triste escravo e negro etíope, que entre todas as aves só é
parecido ao corvo? Que tem que ver a prata e o ouro com o cobre da caldeira e o
ferro da corrente a que está atado? Que tem que ver a liberdade de uma ave com
penas e asas para voar com a prisão do que se não pode bolir dali por meses e
anos, e talvez por toda a vida? Aqui vereis quais são os poderes e
transformações que obra o Rosário nos que oram e meditam os mistérios
dolorosos.
A pomba na Sagrada Escritura, como consta de infinitos
lugares, não só é símbolo da oração e meditação absolutamente, senão dos que
oram e meditam em casos dolorosos; por isso el-rei Ezequias nas suas dores
dizia: Meditabor ut columba. - E a razão
desta propriedade, e semelhança é porque a pomba com os seus arrulhos não canta
como as outras aves, mas geme. Quer dizer pois o profeta, e diz admiravelmente,
falando convosco na mais miserável circunstância deste inferno da terra: Si
dormiatis inter medias caldarias, vasaque plena fulligine - se não só de
dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que
só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo,
nem por isso vos desconsoleis e desanimeis: orai e meditai os mistérios
dolorosos, acompanhando a Cristo neles, como São João, e nessa triste servidão
de miserável escravo tereis o que eu desejava sendo rei, quando dizia: Quis
dabit mihi pennas sicut columbae, et volabo, et requiescam (SI. 54,
7): Oh! quem me dera asas como de pomba para voar e descansar? - E estas são as
mesmas que eu vos prometo no meio desta miséria: Pennae columbae
deargentatae, et posteriora ejus in pallore ouri - porque é tal a virtude
dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam
gemendo como pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a
prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos
homens, posto que pretos, em anjos.
Dizei-me que coisa é um anjo? Os anjos não são outra coisa
senão homens com asas, e esta figura não lha deram os pintores, senão o mesmo
Deus, que assim os mostrou a Isaías e assim os mandou esculpir no Templo. Pois,
essas são as asas prateadas e douradas com que desse vosso inferno vos viu Davi
voar ao céu para cantar o Rosário no mesmo coro com os anjos. Nem vos meta em
desconfiança a vossa cor nem as vossas fornalhas, porque na fornalha de
Babilônia, onde o mestre da capela era Filho de Deus, no mesmo coro meteu as
noites com os dias: Benedicite, noctes et dies, Domino. Antes vos digo
- e notai muito isto para vossa consolação - que se no céu não entraram vossas
vozes com as dos anjos o Rosário que lá se canta não seria perfeito. Consta de
muitas revelações e visões de santos que os anjos no céu também rezam ou cantam
o Rosário, por sinal que ao nome de Maria fazem uma profunda inclinação, e ao
nome de Jesus se ajoelham todos; e digo que, entrando vós no mesmo coro, será o
Rosário dos anjos mais perfeito do que é sem vós, porque a perfeição do Rosário
consiste em se conformar quem o reza com os mistérios que nele meditam,
gozando-se com os gozosos, doendo-se com os dolorosos e gloriando-se com os
gloriosos. E posto que os anjos nos gozosos se podem gozar, e nos gloriosos se
podem gloriar, nos dolorosos não se podem doer, porque o seu estado é incapaz
de dor. Isto, porém, que eles não podem fazer no céu, fazeis vós na terra, se
no meio dos trabalhos que padeceis, vos doeis mais das penas de Cristo que das
vossas. Assim que do Rosário dos anjos, e do vosso, ou repartidos em dois
coros, ou unidos em um só, se inteira a perfeição, ou se aperfeiçoa a harmonia
dos mistérios do Rosário.
Os dolorosos - ouçam-me agora todos - os dolorosos são os
que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que, devendo-vos tratar como
irmãos, se chamam vossos senhores. Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e
vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos
trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há
trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem
é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: Sic vos non vobis
mellificatis, apes.
- O mesmo passa nas vossas colmeias. As abelhas fabricam o mel sim, mas não
para si. E, posto que os que o logram é com tão diferente fortuna da vossa, se
vós, porém, vos souberdes aproveitar dela, e conformá-la com o exemplo e
paciência de Cristo, eu vos prometo primeiramente que esses mesmos trabalhos
vos sejam muito doces, como foram ao mesmo Senhor: Dulce lignum, dulces
clavos, dulcia ferens pondera - e que depois - que é o que só importa -
assim como agora, imitando a São João, sois companheiros de Cristo nos
mistérios dolorosos de sua cruz, assim o sereis nos gloriosos de sua
Ressurreição e Ascensão. Não é promessa minha, senão de São Paulo, e texto
expresso de fé: Haeredes quidem Dei, cohaeredes outem Christi:si tamen
compatimur ut et conglorificemur. - Assim como
Deus vos fez herdeiros de suas penas, assim o sereis também de suas glórias,
com condição, porém, que não só padeçais o que padeceis, senão que padeçais com
o mesmo Senhor, que isso quer dizer com patimur. Não basta só padecer, mas é
necessário padecer com Cristo, como São João.
Oh! como quisera e fora justo que
também vossos senhores consideraram bem aquela conseqüência: Si tamen
compatimur ut et conglorificemur. - Todos querem ir à glória e ser
glorificados com Cristo, mas não querem padecer nem ter parte na cruz com
Cristo. Não é isto o que nos ensinou a Senhora do Rosário na ordem e disposição
do mesmo Rosário. Depois dos mistérios gozosos pôs os dolorosos, e depois dos
dolorosos os gloriosos. Por quê? Porque os gostos desta vida têm por
conseqüência as penas, e as penas, pelo contrário, as glórias. E se esta é a
ordem que Deus guardou com seu Filho e com sua Mãe, vejam os demais o que fará
com eles. Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas penas do que vós aos
seus gostos, a que servis com tanto trabalho. Imitai, pois, ao Filho e à Mãe de
Deus, e acompanhai-os com São João nos seus mistérios dolorosos, como próprios
da vossa condição e da vossa fortuna, baixa e penosa nesta vida, mas alta e
gloriosa na outra. No céu cantareis os mistérios gozosos e gloriosos com os
anjos, e lá vos gloriareis de ter suprido com grande merecimento o que eles não
podem, no contínuo exercício dos dolorosos.
IX
Estes são, devotos do Rosário, os três motivos que nascem
dos três nascimentos que vistes, os quais, se forem tão bem exercitados, como
são bem nascidos, nem podeis desejar maior honra nos vossos desprezos, nem
maior alívio nos vossos trabalhos, nem maior dita e ventura na vossa fortuna. A
mesma Mãe do Filho de Deus e de São João é Mãe vossa. E, pois, estes três
filhos já nascidos lhe nasceram segunda vez ao pé da cruz, não falteis na
vossa, posto que tão pesada, nem à imitação de tão honrados irmãos, nem às
obrigações de tão soberana Mãe. Para que assim como a Senhora se gloria de ser
Mãe de São João, assim tenha também muito de que se gloriar em ser Mãe de todos
os pretos, tão particularmente seus devotos. Desta maneira se multiplicou por
vários modos o segundo nascimento de seu unigênito Filho, e desta maneira se
verifica em eterno louvor de seu Santíssimo Nome, que o mesmo Jesus que se
chama Cristo, não só uma, senão três vezes nasceu de Maria: Maria, de qua
natus est Jesus, qui vocatur Christus.Fonte: http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=midias&id=144104