sexta-feira, 19 de junho de 2015

SUCCÈS DE SCANDALE

O escândalo é dito como uma ação ou evento de má fama, que vai contra a "moral e os bons costumes" sociais, isto é, contra as regras escritas ou implícitas que a regem. Assim, quando falamos de "escândalo de corrupção", diz-se que a corrupção nos choca pois seria um comportamento antissocial. São quebradas as regras de convivência e harmonia social, no qual acredita-se que, se quiser enriquecer, então deve-se jogar limpo, sem suborno ou qualquer outro tipo de favorecimento pessoal. Pode também ser um ação na qual uma determinada pessoa, até então vista como de "reputação ilibada" ou adepta de determinado comportamento ou opinião social, repentinamente é flagrada fazendo algo que vai precisamente contra sua "reputação ilibada", como um ativista antigay e racista flagrado no CONIC (conhecida zona de prostituição em Brasília) a transar com um preto dentro do carro, ou contra suas opiniões anteriores, como um outro famoso padre da Toca de Assis, aquele que aparecia direto na Canção Nova o qual, de acordo com Dom João Braz, ex-arcebispo de Brasília, envolveu-se em "comportamentos moralmente indignos com seus seguidores" (para bom entendedor, meia palavra basta). O escândalo, portanto, aparece como algo ruim, capaz de acabar com carreiras e reputações.
Filosoficamente, a concepção de escândalo nada tem a ver com esta do senso comum. O escândalo (grego skandalon = "armadilha, cilada, obstáculo") é aquilo que vai contra o que todos aceitam e acham normal. Ele é a "pedra de escândalo" ("a pedra que os construtores rejeitaram tornou-e a pedra angular, uma pedra de escândalo", Carta de Pedro 2, 8), a pedra no caminho "normal" ("no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho", Carlos Drummond). Aristóteles, em seu livro "Metafísica", afirma: "O que na origem levou os homens às pesquisas filosóficas foi, tal como hoje, o espanto". O espanto é, portanto, a origem da filosofia. O que é o espanto? é o virar do avesso, é assustar com o normal. Tudo que era "normal" agora já não é, o simples tornou-se complexo e já nada mais faz sentido. Tudo está confuso. É a dúvida filosófica, e é em busca de respostas às dúvidas que aquele que se espantou começará sua jornada filosófica.
Nossa sociedade é repleta de preconceitos que são passados de geração em geração como um patrimônio sagrado e inquestionável. São ditas serem coisas "normais" e que todos fazem. É o "certo" a fazer. Todo e qualquer ser humano, e só existe ser humano na sociedade ("Ora, aquele que não pode viver em sociedade, ou que nada precisa por bastar-se a si próprio, não faz parte do Estado; é um bruto ou um deus.", Aristóteles, Política) é, sem que se dê conta, adestrado a absorver todos os preconceitos de sua sociedade. E o que é o preconceito? o preconceito é o PRÉ-conceito, o conceito anterior ao Conhecimento. São as respostas prontas que somos educados a aceitar sem questionar ("mulher no volante, perigo constante", "mulher que namora muito é piranha", "não tenha medo, homem, não seja mulherzinha!"). Se todos seguissem à risca o que nosso sociedade diz que é o certo, seríamos australopitecos ainda hoje. Não haveria nenhuma mudança social. Porém, se 99% da sociedade realmente nasce, cresce e morre sem questionar a si mesmo e a sociedade, existe 1% que não o faz. São aqueles que questionam os pré-conceitos sociais e expõem às claras tudo aquilo que muitos um dia pressentem, mas não possuem coragem de falar: expõem a hipocrisia e  a contradição dos pre-conceitos. São os Escandalosos. São estes que jogam a bosta no ventilador, são os piratas que acabam com a paz idílica e bucólica das maravilhosas praias ensolaradas e com águas quentes de Hong Kong (Projeto China, Jack Chan), são os que batem na cara da sociedade, podendo ser com luva de pelica como Machado de Assis ou com um martelo como Nietzsche.
O escândalo, portanto, é o ataque frontal a todos os pré-conceitos sociais, ao normal, ao que todo mundo pensa e faz. Aristóteles, em seu livro "Poética", nos apresenta o conceito de Catarse. Segundo ele, catarse (grego katharsis = purificação) é o ato proporcionado pela tragédia na qual as emoções do ouvinte se "purificam" através da tragédia, na qual um heroi mitológico, por exemplo Édipo, passa do estado de felicidade à infelicidade, provocando assim sentimentos de piedade e terror. O escândalo também tem um motivo de ser bastante claro: ele sempre "purifica" aqueles que tomam contacto com ele  de seus pré-conceitos, porque os força a "virar do avesso", a se colocar do outro lado. Quando ficamos sabendo de um caso de pedofilia, por exemplo, por mais que a imensa maioria sociedade esteja se lixando para nossa juventude, o que fica evidente com a rifa do "futuro da nação" na panaceia chamada "redução da maioridade penal", esta mesma sociedade leiloeira choca-se e é obrigada a se colocar contra sua vontade no lugar da criança explorada e maltratada pois, por mais que se despreze as crianças, nomeadamente pretas e pobres, são somente a dos outros que são desprezadas. As de sua família são anjinhos, o que levam a mente a automaticamente pensar nelas diante de uma agressão social que pode acontecer com qualquer um, inclusive com as delas, e praticamente todos tem crianças na família. Há uma catarse. Um outro exemplo é a crucificação de Jesus na parada gay. A sociedade, cujo comportamento padrão é espancar, estuprar e matar homossexuais com a mesma placidez com que bebe-se um copo d'água, considera absolutamente normal e parte da paisagem homossexuais ou héteros confundidos com um aparecerem decapitados no jornal ou na net, ninguém liga, possui o mesmo peso de achar um anúncido das casas Bahia no chão. No entanto, há uma contradição aqui: a religião dominante desta sociedade é a cristã, que adora como Deus um bandido torturado e assassinado a sangue frio por ter tratado a escória social daquele tempo, tais como prostitutas, mendigos e vagabundos como gente, inclusive deitando ao lixo toda a doutrina judaica ao afirmar que seriam eles que seriam salvos por Deus (o pai), não os beatos e ratos de igreja. Apesar de, ao longo dos séculos, a gangue chamada igreja ter traído seu próprio mestre e se aliado despudoradamente ao poder opressor, o mesmo que o executou, jamais o pensamento libertário e revolucionário do verdadeiro Jesus desapareceu de cena, sempre pipocando aqui e ali. O pessoal da parada gay observou atentamente tal fato e, voilá, nasceu mais um escândalo social para nos purificar de nosso pré-conceito, neste caso o de rebaixar a uma condição inumana os homossexuais com a benção dos padres e pastores cristãos, aliados incondicionais da classe dominante, autorizando legalmente perante Deus, ou melhor, perante a falsa concepção de Deus inventada pela teologia cristã, o assassinato em massa deles durante dois milênios. Há novamente uma catarse, atestada fartamente pelos inúmeros protestos, ameaças de morte e ataques físicos e psicológicos ao homossexuais país afora, o que comprova que a sociedade foi atingida em cheio na boca do estômago. Foi um enorme sucesso, a ser celebrado durante anos a fio por eles.
O escândalo, sendo um desvio ao sacro, ao certo, ao que todo mundo faz, é o que move o mundo. Com efeito, todas as grandes descobertas  da sociedade tiveram origem porque alguém pensou diferente, como se diz, "fora da caixa". Mas, por isso mesmo, estas pessoas tiveram que enfrentar toda sorte de hostilidade, inimizade e outros graves problemas por terem sido consideradas "marginais". A própria igreja católica é um exemplo disso: o celebrado Tomás de Aquino, o original, não o espantalho criado pela facção conservadora neotomista da igreja para servir à sua ideologia depravada e caduca, enfrentou fortíssima resistência em sua época por ter tomado conhecimento da doutrina de um antigo filósofo grego pagão, portanto considerado herético e banido, denominado Aristóteles, e tentado refinar a gambiarra tosca que era a teologia católica aproveitando-se dos conceitos do velho Filósofo, como ele o chamava depreciativamente. Duns Scotus também foi caiu no desagrado do alto clero e foi bruscamente transferido de Paris para Colônia, apenas com a roupa do corpo. A lista de "marginais", dentro e fora da igreja, é imensa.
No entanto, basta olhar ao redor, e ver o quão benéfico é o escândalo: tudo ao nosso redor, que chamamos "civilização", é produto do escândalo. É a ele que devemos o que somos e o que temos hoje. Sem ele, estacionaríamos, ou melhor, nem teríamos saído do lugar. Assim como uma das funções dos filósofos é olhar para além da cortina que todos veem, e examinar o que há nos bastidores e que muito poucos veem, assim também a função do escândalo é olhar para além do normal, do cotidiano, dos pré-conceitos, e forçar um exame deles, para termos coragem de seguir em frente. Escandalizar é filosofar, e filosofar é escandalizar.

Eduardo Viveiros, Filósofo.
SOBRE A TEOLOGIA CRISTÃ, OU COMO A FILOSOFIA GREGA FOI ESTUPRADA PELOS CRISTIANISMO

"O maior problema, contudo, ao qual foi submetida a obra aristotélica, encontra sua causa no tortuoso percurso linguístico e cultural do qual ela foi objeto até atingir a Europa cristã.
Apesar do enorme interesse despertado pela descoberta dos textos acroamáticos ou esotéricos em meados do século I a.c., o mundo culto ocidental (então, a Europa) logo foi tomado pela fé cristã e a seguir pela cristianização oficial estabelecida pela igreja, mesmo ainda sob o Império Romano.
A cristianização do Império romano permitiu aos poderosos Padres da Igreja incluir a filosofia grega no contexto da manifestação pagã, convertendo o eu cultivo em prática herética. A filosofia aristotélica foi condenada e seu estudo posto na ilegalidade. Entretanto, com a divisão do Império romano em 385 a.D., o corpus aristotelicum, composto por Andrônico de Rodes, foi levado de Roma para Alexandria.
Foi no Império romano do Oriente (Império bizantino) que a obra de Aristóteles voltou a ser regularmente lida, apreciada e finalmente traduzida...para o árabe (língua semita, que, como sabemos, não entretém qualquer afinidade com o grego) a partir do século X.
Portanto, o PRIMEIRO Aristóteles TRADUZIDO foi o dos grandes filósofos árabes, particularmente Avicena (Ibn Sina, morto em 1036) e Averróis (Ibn Roschd, falecido em 1198),ambos exegetas de Aristóteles, sendo o último considerado o mais importante dos PERIPATÉTICOS ÁRABES da Espanha, e NÃO o da latinidade representada fundamentalmente por Sto. Tomás de Aquino.
Mas, voltando no tempo, ainda no século III, os Padres da Igreja (homens de ferro, como Tertuliano, decididos a consolidar institucionalmente o cristianismo oficial a qualquer custo), concluíram que a filosofia helênica, em lugar de ser combatida, poderia revelar-se um poderoso instrumento para a legitimação e fortalecimento intelectual da doutrina cristã. Porém, de que filosofia grega dispunham em primeira mão? somente do neoplatonismo e do estoicismo, doutrinas filosóficas gregas que, de fato, se mostravam conciliáveis com o cristianismo, especialmente o último, que experimentara uma séria continuidade romana graças a figuras como Sêneca, Epíteto e o imperador Marco Aurélio Antonino.
Sob os protestos dos representantes do neoplatonismo (Porfírio, Jâmblico, Proclo etc.), ocorreu uma apropriação do pensamento grego por parte da igreja. Situação delicadíssima para os últimos filósofos gregos que, se por um lado podiam perder suas cabeças por sustentar a distinção e/ou oposição do pensamento grego ao cristianismo, por outro tinham que admitir o fato de muitos de seus próprios discípulos estarem se convertendo a este, inclusive através de uma tentativa de compatibilizá-lo não só com Platão, como também com Aristóteles, de modo a torná-los "aceitáveis" para a igreja.
Assim, aquilo que ousaremos chamar de APROPRIAÇÃO DO PENSAMENTO GREGO foi encetado inicialmente pelos próprios discípulos dos neoplatônicos, e se consubstanciou na conciliação do cristianismo (mais exatamente a teologia cristã que principiava a ser construída e estruturada naquela época) primeiramente com o platonismo via neoplatonismo e depois com o aristotelismo, não tendo sido idsso pioneiros nem os grandes vultos da patrística (São Justinio, Clemente de Alexandria, Orígenes e mesmo Sto. Agostinho) relativamente a Platão, nem aqueles da escolástica (John Scot Erigene e Sto Tomás de Aquinio) relativamente a Aristóteles.
A primeira consequência desse "remanejamento" filosófico foi nivelar Platão e Aristóteles. Afinal, não se tratava de estudar a fundo e exaustivamene os grandes sistemas filosóficos gregos - os pragmáticos Padres da Igreja viam o vigoroso pensamento helênico meramente como um precioso veículo a atender seu objetivo, ou seja, propiciar fundamento e conteúdo filosófico à incipiente teologia cristã.
Os discípulos cristãos dos neoplatônicos não tiveram, todavia, acesso aos manuscritos originais do corpus aristotelicum.
Foi através da conquista militar da península ibérica e da região do mar Mediterrâneo pelas tropas cristãs, inclusive durante as cruzadas, que os cristãos voltaram a ter contato com as obras do Estagirita, precisamente por intermédio os INFIÉIS, ou seja, tiveram acesso às TRADUÇÕES E PARÁFRASES árabes (e mesmo hebraicas) a que nos referimos anteriormente.
A partir do século XII começaram a surgir as primeiras traduções latinas (latim erudito) da obra de Aristóteles. Conclusão: o Aristóteles linguística e culturamente original durante séculos jamais frequentou a Europa medieval.
Tanto Andrônico de Rodes, no século I a.C., ao estabelecer o CORPUS ARISTOTELICUM, quanto o neoplatônico Porfírio no século III ressaltaram nesse corpus o órganon (série de tratados dedicados à lógica, ou melhor, à Analítica, no dizer de Aristóteles) e sustentaram a ampla divergência doutrinária entre os pensamentos de Platão e Aristóteles. Os discípulos cristãos dos neoplatônicos, a partir da alvorada do século III, deram realce à lógica, à física e à retórica, e levaram a cabo a proeza certamente falaciosa de conciliar os dois maiores filósofos da Grécia. Qunto aos estócios romanos, também prestigiaram a lógica aristotélica, mas deram destaqu à ética, não nivelando Aristóteles a Platão, mas os aproximando.
O fato é que a igreja obteve pleno êxito no seu intento, graças à inteligência e sensibilidade agudas de homens como o bispo de Tagasta, Aurélio Agostino (Sto Agostinho) (354 - 430 d.C.)e o dominicano oriundo de Nápoles, Tomás de Aquino (Sto. Tomás) (1224 - 1274), que se revelaram vigorosos e fecundos teólogos, superando o papel menor de meros intérpretes e APROVEITADORES das originalíssimas concepções gregas.
Quanto a Aristóteles, a igreja foi muito mais além e transformou o IL FILOSOFO (como Aquino o chamava) na suma e única autoridade do conhecimento, com o que, mais uma vez, utilizava o pensamento grego para alicerçar os dogmas da cristandade e, principalmente, respaldar e legitimar sua intensa atividade política oficial e extraoficial, caracterizada pelo autoritarismo e a centralização do poder em toda a Europa.
Se, por um lado, o Estagirita se sentiria certamente lisonjeado com tal posição, por outro, quem conhece seu pensamento sabe que também certamente questionaria o próprio CONCEITO de autoridade exclusiva do conhecimento. (BINI, 2010, p. 19 - 22).
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