terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O ANTICRISTO DE NIETZSCHE 

      O livro "O Anticristo" de Friedrich Nietzsche é um daqueles livros que, mesmo após 100 anos de sua publicação, continua tendo poder para abalar o mundo, especialmente o ocidental, intacto como naquele tempo em que foi escrito. Os cristãos invariavelmente começam a ter ataques de nervos à simples menção do nome de seu autor, provavelmente o ser vivo mais odiado por eles em todos os tempos. Mas tudo isso tem sua razão de ser: de fato, "O Anticristo" é um dos poucos livros, senão talvez o único, que põe a nu e descoberto todo o sagrado edifício de mentiras na qual as religiões de forma geral, e particularmente o cristianismo, foram erguidas. Mas, antes de falar sobre o livro, é preciso esclarecer uma coisa: qual foi a tradução que você leu? eu li a da editora escala e, se for o seu caso, a introdução do tradutor deve ser ignorada, porque é de uma carolice revoltante, de alguém que escreveu movido sob a influência de seus sentimentos religiosos "ultrajados" (está em parêntesis porque logo darei um sentido a esta palavra), isto é, de alguém pouco profissional incapaz de separar seus sentimentos pessoais com estudos filosóficos.
      Disse a filósofa Scarlet Marton, a maior especialista em Nietzsche no Brasil, no programa "A Hora da Coruja", dirigido pelo filósofo Paulo Ghiraldelli (https://www.youtube.com/watch?v=V8SvTlEAUuY), que não é possível de facto saber se Nietzsche era mesmo ateu ou não. E quem leu este livro realmente fica com esta impressão: ele chega mesmo a contar Jesus como um "espírito livre", isto é, como muito próximo dos "aristocratas", dos "fortes" ("Usando de certa tolerância no uso das palavras, se poderia chamar Jesus um ''espírito livre'", p. 64). Por isso mesmo, e aqui está a origem do ódio implacável movido pelos cristãos a ele, ele faz questão de traçar uma linha contrastante entre Jesus e seus discípulos, isto é, os cristãos, tudo que veio depois dele e se apropriou, ou melhor, destruiu seu "legado". Para Nietzsche, Jesus nunca quis fundar religião alguma, ter pretensões políticas, salvar o mundo ou qualquer coisa remotamente parecida com isso. O que ele realmente fez foi VIVER COM OUTRO AGIR, diferente do agir judaico até então predominante, isto é, "não tinha mais necessidade de fórmulas, de rito para suas relações com Deus, nem sequer da oração....[...] não é uma "fé" que distingue o cristão: o cristão age, ele se distingue por outro agir" (p. 65). É nesse sentido que se deve compreender mais na frente a famosa frase de Nietzsche: "No fundo existiu um só cristão, e ele morreu na cruz" (p. 74). Jesus foi a única pessoa que, de fato, viveu com este agir "cristão", uma outra forma de fazer as coisas: "por exemplo, não oferece resistência àquele que é mau para com ele, nem em palavras nem em seu coração" (p.65), isto é, precisamente o oposto das práticas correntes daquele tempo. O agir de Jesus não era algo exterior, era sobretudo interior, uma atitude interior, e por isso Nietzsche tem em grande conta este personagem, pois, diferente dos cristãos, seres fracos e débeis, ele não agia assim forçado por um poder sobrenatural coator que o castigaria caso fizesse diferente, mas por livre e espontânea vontade, e esta é a grande diferença entre um forte e um fraco.
Mas tudo mudou com a morte de Jesus na cruz: o sentimento de desalento e ofensa que seus "discípulos" experimentaram, a suspeita de que essa morte poderia constituir a refutação de sua causa (p. 76) fizeram com que os discípulos procurassem uma causa para este acontecimento. E a causa, o inimigo identificado só poderia ser o judaísmo, e Jesus daí em diante foi entendido como um rebelde contra a ordem. É a partir daqui que a coisa degringolou. "O Deus único e o FIlho único de Deus: ambos produtos do ressentimento" (p. 77). Doravante, a morte de Jesus passaria a ser entendia como um sacrifício humano expiatório. E mais tarde, com o surgimento do rabino Paulo, foi finalmente inaugurada a igreja cristã tal como é hoje, um ajuntamento de ressentidos, negadores da vida e fracotes incapazes de qualquer coisa em virtude de maltratarem a própria vida em seus corpos e mentes toruturados psicológica e fisicamente.
      Basicamente, este é o conteúdo de "O Anticristo". Compreende-se o suor frio saído das hostes cristãs contra Nietzsche, aquele que dilacerou completamente todas as mentiras teológicas feitas durante 2000 anos para justificar o extermínio da vida em toda parte por onde o cristianismo chegou e se consolidou.. E, de fato, não é preciso ir muito longe para verificar isto, basta lembrar como as culturas africanas e indigenas de nossos antepassados americanos, que possuíam uma moral muito mais afirmadora da vida do que a cristã. foram duramente reprimidas durante mais de 500 anos e até os dias atuais continuam assim. Entretanto, é bom lembrar que o cristianismo criticado por Nietzsche era o de seu tempo, isto é, um cristianismo extremamente moralista e repressor, comtemporâneo da era vitoriana. Hoje, no século XXI em que vivemos, o cristianismo está bastante diferente deste cristianismo de um século atrás, pois foi forçado pelo que os teólogos erroneamente chamam de "modernismo" (por esse nome entendem todas as filosofias modernas, desde o liberalismo até o comunismo, como se todas fossem iguais para serem metidas no mesmo balaio de gato, atitude típica de fanáticos religiosos...) a deixarem para trás pelo menos seus aspectos mais sombrios. Um exemplo que me vem à mente dessa mudança da igreja é a teologia da libertação, que rompeu em grande medida com a tradicional aliança entre igreja e classe dominante, se aproximando muito mais dos pobres do que a igreja católica jamais sonhou em sua vida. A igreja anglicana inglesa há tempos permite a ordenação de mulheres ou mesmo o casamento homossexual em algumas vertentes, a renovação carismática, na igreja católica, e o neopentecostalismo, nas igreja evangélicas, praticamente desprovidas de qualquer apelo moral mais sério pois privilegiam antes de mais nada o aspecto material da vida, como bens materiais para seus fieis (muito nietzscheano, por sinal), entre outros exemplos. Entretanto, mesmo com esse "desaperto de cinto" da rígida moral cristã, elaborada durante milênios para matar qualquer indício de vida, não podemos nos enganar: ela continua extremamente repressora da vida, especialmente na maior igreja cristã da atualidade, a igreja católica, que ainda se apoia em argumentos patéticos para reprimir o mais possível o sexo, por exemplo. Nunca devemos esquecer disso, e precisamente por isso é que Nietzsche continua tão atual no mundo de hoje, e também tão odiado pelo fanatismo religioso cristão, e ainda viverá durante muito, muito tempo.

contador de visitas