segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Resenha do filme "Pantera Negra"

     O novo filme do Pantera Negra, o 18º do universo cinematográfico Marvel, vem causando furor entre os negros mundo afora. E o principal motivo é...a beleza do ator Michael B. Jordan, acredite se quiser. Ao que parece, os aspectos filosóficos do filme foram completamente ignorados pela militância negra, ainda que justifiquem tal comportamento com o velho cliché da "representatividade negra", que na verdade não representa muita gente, já que quase todos os negros mortais da atualidade nem sequer chegam perto dos corpos perfeitamente malhados e retocados de seus supostos representantes nas mídias, tal como a imensa maioria dos brancos para com seus modelos, o que não deixa de ser surpresa, já que ser fisicamente perfeito é simplesmente impossível num mundo de imperfeições como o nosso. Fica a questão: o cliché da "representatividade negra", longe de ser algo original, não seria simplesmente a cópia fiel, o braço, só que negro, da ditadura da perfeição imposta pela mídia desde longo tempo a todos, visando capturar e e domesticar a exigência de visibilidade dos negros? Talvez o furor da militância em torno de Michael Jordan nem tenha se dado por isso, e sim simplesmente por falta do que falar ao mundo mesmo por parte da militância negra, dado o atual baixo nível intelectual que se vê por aí, com discussões rasas, quase beirando o ridículo, vai saber.
     Mas chega de papo. "Pantera Negra" já nasceu altamente louvado pela crítica especializada, e felizmente (porque nem todo filme excelente faz sucesso nas bilheterias) também foi um estouro com o público, nomeadamente o público negro. Pudera. Não é todo dia que vemos um super-herói negro feito por um grande estúdio nos E.U.A. À parte os aspectos técnicos fantásticos do filme, sua excelência reside mesmo nos aspectos filosóficos carregados nele.
     Em primeiro lugar, no relacionamento entre o mundo branco e o negro, surpreendentemente inovador no filme. Nele, ao contrário do que se vê em filmes alegadamente elogiosos aos negros, o negro nunca é mostrado em uma posição coadjuvante e o branco como o protagonista principal; ao contrário, é o negro quem dá as cartas. Já no início do filme, quando um dos capangas do Garra Sônica vai ao museu "roubar" uma machadinha feita com vibrânio, ele deita ao chão toda a suposta ciência e filosofia brancas de pelo menos 500 anos mostrando, sem qualquer cuspe para aliviar, toda a fragilidade dos argumentos científico-filosóficos utilizados por eles para roubarem não só a África, mas o restante do mundo. Pus "roubar" entre aspas porque, afinal de contas, quem era mais ladrão? a gangue do Garra Sônica, ou os povos europeus que o roubaram com violência inaudita de seu povo de origem? não dá pra saber, tampouco me arrisco a responder. O que sei é que a arrogância centenária, tão tipicamente hollywoodiana, de os brancos se acharem os guardiões da paz e da justiça em nosso mundo, torna-se pó em instantes, com a resposta deste capanga, não tão brilhante mas de um poder retórico poderosíssimo, que mais tarde se revelará um dos eixos principais do filme. 
     Em segundo lugar, não podemos deixar de notar a homenagem que o filme fez à cultura negra. Mas, ao contrário do que poderia se esperar, "cultura negra", aqui, fugiu do típico exclusivismo da cultura negra norte-americana. A homenagem deu-se em dois momentos: uma no laboratório em Wakanda, onde o som de fundo era (o choro dos moralistas é livre) um funk carioca! sim, um funk carioca tocando em Wakanda. Tive a impressão de ouvir choro e ranger de dentes, especialmente considerando que o público na sessão a qual fui era quase que exclusivamente de playboy branco, excetuando eu e um grande amigo que foi comigo obviamente, precisamente àqueles que tanto criticam o funk por ser de origem negra durante o dia ao mesmo tempo que rebolam a bunda nas baladas ao som dele à noite. O outro momento, mas não menos significativo, foi a hora da perseguição de T'Challa ao Garra Sônica, na qual o fundo sonoro dessa vez foi o kuduro, famosíssimo ritmo musical de origem angolana e sucesso absoluto pelo mundo, nomeadamente nas boates de Portugal. Perfeitas escolhas, principalmente considerando o preconceito forte contra os ritmos negros em países como o Brasil, da qual sem dúvida os criadores do filme estão cientes.
     Um outro momento de subversão foi na hora em, estando a família de T'Challa entre os jabari clamando por ajuda, o agente norte-americano, ao tentar falar em pé de igualdade com M'Baku, foi prontamente silenciado por ele e seus súditos, sendo ameaçado de ser canibalizado por eles. E, para constrangimento geral da plateia, naturalizada com a ideia de negros canibais após um século de cinema eurocêntrico a promovê-lo, M'Baku revelou estar apenas a brincar! Nessa eu tenho certeza absoluta de que vi imensas caras escandalizadas e constrangidas dos brancos ao nosso redor ao serem apanhados de calças curtas em uma armadilha tão ardilosa.....
     Mas a parte mais notável do filme, sem sombra de dúvida, foi o confronto entre T'Challa e Killmonger. Aos desatentos, aquilo lá foi um dos momentos mais memoráveis do filme: T'Challa representava Martin Luther King e sua visão integracionista entre "nós" e "eles", isto é, entre negros e brancos. A visão de que a violência apenas gera mais violência e nada resolve. Já Killmonger representava a visão de Malcom X, a visão radical, a visão de alguém criado em um gueto duríssimo, onde a opressão branca sobre os negros literalmente não conhece limites, e que, por isso, acredita que apenas a força pode trazer a libertação desta opressão. E é aí que entra a grande questão dentro do movimento negro: qual o caminho para a liberdade negra no mundo? a guerra total e sem piedade a todos os brancos, ou será o amor e a paz o caminho? o filme tem o cuidado de não demonizar nem um lado nem o outro, e este é mais um dos méritos dele. Dependendo do ponto de vista, ambos, T'Challa e Killmonger, têm razão, se considerarmos as suas respectivas biografias. No final, o diretor fez sua escolha, afinal de contas é um filme, e um filme necessita ter um final. Porém, fica no ar a reflexão: guerra ou paz? quem me conhece, sabe que discordo fortemente da ala radical do movimento negro que prega uma guerra aos brancos e o extermínio de todos eles (como se fosse possível) porque os negros africanos, sendo as mães de todos os seres humanos que habitam a terra (como bem lembrado por Killmonger, aliás) por isso mesmo sempre tiveram como característica o acolhimento de todas as outras raças, como uma verdadeira mãe sempre faz, jamais nutrindo pensamentos excludentes, separatistas ou mesmo genocidas para com ninguém, sendo tais características lá dos brancos europeus,não deÁfrica, como demonstrado fartamente na história. Imitá-los, longe de "ser africano", como sustentam inúmeros líderes negros de ontem e hoje, somente nos torna iguais aos que nos oprimem, e destroem a pouca noção de humanidade que milagrosamente o ser humano ainda conserva, apesar do racismo. Isso sim que "não é africano", e uma das mais belas filosofias criadas pela humanidade, o ubuntu, está aí para não me deixar mentir. Pensando bem, esta também é uma forte razão para o silêncio e o pouco aprofundamente nestas questões nas resenhas que vejo por aí da militância negra a respeito do mundo, afinal de contas, o radicalismo negro vem ganhando terreno a passos largos, em vista do vácuo político da linha moderada dentro do movimento negro, sem condições algumas de lutar após ter sido sugada até os ossos pelos partidos políticos brancos.
     Por fim, T'Challa, contrariando o costume até então, resolve fazer Wakanda sair do isolacionismo e compartilhar sua ciência e filosofia com o restante da humanidade. A voz do político a interrogar T'Challa, com a pergunta "Mas o que um país pobre como Wakanda tem a oferecer ao mundo?", certamente deve ter representado o grito indignado de milhares de brancos a assistir o filme, despeitados com o facto de não apenas um super-heroi, mas também um país altamente desenvolvido localizar-se no coração da África, comumente visto como o continente miserável por excelência.. Mas o sorriso irônico de T'Challa talvez não tenha sido a resposta perfeita para eles. Mas sem dúvida mostrou bem a altivez do povo negro, detentor de ciência, filosofia e tecnologia altamente avançadas, os quais os brancos nem sequer suspeitam.

Eduardo Viveiros, filósofo.
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